Audioaula "Bergson - A duração psicológica e material", em 17/09/24

 

Se, enfim, eu conservar, unida à imagem da oscilação presente [do pêndulo do relógio], a lembrança da oscilação que a precedeu, […] as perceberei uma na outra, penetrando-se e organizando-se entre si como notas de uma melodia, de modo a formar o que chamo de multiplicidade indistinta ou qualitativa, sem qualquer semelhança com o número. Assim, obterei a imagem da duração pura, mas também terei me livrado por completo da ideia de um meio homogêneo ou de uma quantidade mensurável. Interrogando cuidadosamente a consciência, reconheceremos que ela procede assim todas as vezes que se abstém de representar a duração simbolicamente. Quando as oscilações regulares do pêndulo do relógio nos fazem adormecer, o que produz esse efeito? O último som ouvido, o último movimento percebido? Não, sem dúvida, pois não poderíamos compreender por que o primeiro não agiu da mesma forma. […] É preciso admitir, portanto, que os sons se compõem entre si e agem não por sua quantidade como quantidade, mas pela qualidade que sua quantidade apresenta, ou seja, pela organização rítmica de seu conjunto. Poderíamos compreender de outro modo o efeito de uma excitação fraca e contínua? Se a sensação permanecesse idêntica a si mesma, continuaria indefinidamente fraca, indefinidamente suportável. Mas a verdade é que cada acréscimo de excitação se organiza com as excitações precedentes e que o conjunto aparece para nós como uma frase musical que estaria sempre a ponto de terminar e cuja totalidade incessantemente se alteraria pela adição de alguma nova nota. (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, p. 72, Edipro, 1ª edição, 2020, tradução de Maria Adriana Camargo Cappello)


Mas em parte alguma a substancialidade da mudança é tão visível, tão palpável, quanto no domínio da vida interior. […] Há simplesmente a melodia contínua de nossa vida interior – melodia que prossegue e prosseguirá, indivisível, do começo ao fim de nossa existência consciente. Nossa personalidade é exatamente isso. É justamente essa indivisível continuidade de mudança que constitui a duração verdadeira. Não posso entrar aqui no exame aprofundado de uma questão da qual tratei alhures. Limitar-me-ei então a dizer, para responder àqueles que veem nessa duração “real” algo de inefável e misterioso, que ela é a coisa mais clara do mundo: a duração real é aquilo que sempre se chamou tempo, mas o tempo percebido como indivisível. Que o tempo implique a sucessão, não o contesto. Mas que a sucessão se apresente primeiro à nossa consciência como a distinção de um “antes” e de um “depois” justapostos, é o que eu não conseguiria conceder. Quando escutamos uma melodia, temos a mais pura impressão de sucessão que possamos ter – uma impressão tão afastada quanto possível daquela da simultaneidade – e, no entanto, é a própria continuidade da melodia e a impossibilidade de decompô-la que nos dão essa impressão. Se a recortamos em notas distintas, em tantos “antes” e “depois” quantos nos aprouver, é porque nela misturamos imagens espaciais e porque impregnamos de simultaneidade a sucessão: no espaço, e apenas no espaço, há distinção nítida de partes exteriores umas às outras. Reconheço, por outro lado, que é no tempo espacializado que nos instalamos normalmente. Não temos nenhum interesse em escutar o rumorejo ininterrupto da vida profunda. E, no entanto, a duração real está aí. É graças a ela que tomam lugar num único e mesmo tempo as mudanças mais ou menos longas as quais assistimos em nós e no mundo exterior. Assim, trata-se do dentro ou do fora, de nós ou das coisas, a realidade é a própria mobilidade. (O pensamento e o movente, p. 171a 173, Martins Fontes Editora, 1ª edição, 2006, tradução de Bento Prado Neto)


Vale dizer que toco a realidade do movimento quando ele me aparece, interiormente a mim, como uma mudança de estado ou de qualidade. Mas, então, por que não se passaria o mesmo quando percebo mudanças de qualidade nas coisas? O som difere absolutamente do silêncio, como também um som de outro som. Entre a luz e a obscuridade, entre cores, entre nuances, a diferença é absoluta. A passagem de uma à outra é, igualmente, um fenômeno absolutamente real. (Matéria e memória, p. 229 e 230, Martins Fontes Editora, 2ª edição, 1999, tradução de Paulo Neves)


Mas, à medida que se realizam mais completamente as condições da vida social, também se acentua a corrente que leva nossos estados de consciência do interior para o exterior. Pouco a pouco, esses estados se transformam em objetos ou em coisas; não se separam apenas uns dos outros, mas também de nós mesmos. Passamos a só percebê-los no meio homogêneo no qual congelamos sua imagem e mediante a palavra que lhe empresta sua coloração banal. Assim se forma um segundo eu que recobre o primeiro, um eu cuja existência tem momentos distintos, cujos estados, que se destacam uns dos outros, são facilmente expressos por palavras. (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, p. 90, Edipro, 1ª edição, 2020, tradução de Maria Adriana Camargo Cappello)