Audioaula "Bergson - A percepção como seleção de imagens", em 04/03/16

 

Matéria e memória, Martins Fontes Editora, 2ª edição, 1999


É verdade que uma imagem pode ser sem ser percebida; pode estar presente sem estar representada; e a distância entre estes dois termos, presença e representação, parece justamente medir o intervalo entre a própria matéria e a percepção consciente que temos dela. Mas examinemos essas coisas mais de perto e vejamos em que consiste ao certo essa diferença. Se houvesse mais no segundo termo do que no primeiro, se, para passar da presença à representação, fosse preciso acrescentar alguma coisa, a distância seria intransponível, e a passagem da matéria à percepção permaneceria envolvida em um impenetrável mistério. O mesmo não aconteceria se pudéssemos passar do primeiro termo ao segundo mediante uma diminuição, e se a representação de uma imagem fosse menos que sua simples presença; pois então bastaria que as imagens presentes fossem forçadas a abandonar algo delas mesmas para que sua simples presença as convertesse em representações. Ora, eis a imagem que chamo de objeto material; tenho a representação dela. Como se explica que ela não pareça ser em si o que é para mim? A razão é que esta imagem, solidária à totalidade das outras imagens, continua-se nas que a seguem, assim como prolongava aquelas que a precedem. Para transformar sua existência pura e simples em representação, bastaria suprimir de uma só vez o que a segue, o que a precede, e também o que a preenche, não conservando mais do que sua crosta exterior, sua película superficial. O que a distingue, enquanto imagem presente, enquanto realidade objetiva, de uma imagem representada é a necessidade em que se encontra de agir por cada um de seus pontos sobre todos os pontos das outras imagens, de transmitir a totalidade daquilo que recebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária, de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo. Eu a converteria em representação se pudesse isolá-la, se pudesse sobretudo isolar seu invólucro. [...] Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros de indeterminação", e se o grau dessa indeterminação é medido pelo número e pela elevação de suas funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções não estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por aquelas dentre as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percepções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então, para nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz que emana delas, luz que, propagando-se sempre, jamais teria sido revelada. (p. 32 a 34)


Acompanhe-se, com efeito, passo a passo, o progresso da percepção externa desde a monera até os vertebrados superiores. Descobrimos que no estado de simples massa protoplásmica a matéria viva já é irritável e contrátil, que ela sofre a influência dos estímulos exteriores, que ela responde a eles através de reações mecânicas, físicas e químicas. À medida que avançamos na série dos organismos, vemos o trabalho fisiológico dividir-se. Células nervosas aparecem, diversificam-se, tendem a agrupar-se em sistema. Ao mesmo tempo, o animal reage por movimentos mais variados à excitação exterior. Mas, ainda que o estímulo recebido não se prolongue imediatamente em movimento realizado, ele parece simplesmente aguardar a ocasião disso, e a mesma impressão que transmite ao organismo as modificações ambientais determina ou prepara sua adaptação a elas. Entre os vertebrados superiores, sem dúvida torna-se radical a distinção entre o automatismo puro, sediado sobretudo na medula, e a atividade voluntária, que exige a intervenção do cérebro. [...] O que se passa, com efeito, na ação reflexa? O movimento centrípeto comunicado pela excitação reflete-se imediatamente, por intermédio das células nervosas da medula, num movimento centrífugo que determina uma contração muscular. Em que consiste, por outro lado, a função do sistema cerebral? O estímulo periférico, em vez de propagar-se diretamente para a célula motora da medula e de imprimir ao músculo uma contração necessária, remonta em primeiro lugar ao encéfalo, tornando depois a descer para as mesmas células motoras da medula que intervém no movimento reflexo. [...] O cérebro não deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, que não uma espécie de central telefônica: seu papel é "efetuar a comunicação", ou fazê-la aguardar. (p. 24 a 26)


Assinalemos de início que uma lei rigorosa vincula a extensão da percepção consciente à intensidade de ação de que o ser vivo dispõe. Se nossa hipótese é correta, essa percepção aparece no momento preciso em que um estímulo recebido pela matéria não se prolonga em reação necessária. No caso de um organismo rudimentar, será preciso, é verdade, um contato imediato do objeto de interesse para que o estímulo se produza, e nesse caso a reação não se pode fazer esperar. É assim que, nas espécies inferiores, o tocar é passivo e ativo ao mesmo tempo; serve para reconhecer uma presa e capturá-la, para perceber o perigo e procurar evitá-lo. Os prolongamentos variados dos protozoários, os ambulacros dos equinodermas são órgãos de movimento assim como de percepção tátil; o aparelho urticante dos celenterados é um instrumento de percepção assim como um meio de defesa. Em uma palavra, quanto mais imediata deve ser a reação, tanto mais é preciso que a percepção se assemelhe a um simples contato, e o processo completo de percepção e de reação mal se distingue então do impulso mecânico seguido de um movimento necessário. Mas, à medida que a reação torna-se mais incerta, que dá mais lugar à hesitação, aumenta também a distância na qual se faz sentir sobre o animal a ação do objeto que o interessa. Através da visão, através da audição, ele se relaciona com um número cada vez maior de coisas, ele sofre influências cada vez mais longínquas; e, quer esses objetos lhe prometam uma vantagem, quer o ameacem com um perigo, promessas e perigos recuam seu prazo. A parte de independência de que um ser vivo dispõe, ou, como diremos, a zona de indeterminação que cerca sua atividade, permite portanto avaliar a priori a quantidade e a distância das coisas com as quais ele está em relação. Qualquer que seja essa relação, qualquer que seja portanto a natureza íntima da percepção, pode-se afirmar que a amplitude da percepção mede exatamente a indeterminação da ação consecutiva, e consequentemente enunciar esta lei: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo. (p. 28 e 29)