Audioaula "Deleuze & Guattari - A máquina despótica bárbara", em 19/08/16

 

O anti-Édipo, Editora 34, 1ª edição, 2010, tradução de Luiz Orlandi.


A instauração da máquina despótica ou do socius bárbaro pode ser assim resumida: nova aliança e filiação direta. O déspota recusa as alianças laterais e as filiações extensas da antiga comunidade. Ele impõe uma nova aliança e coloca-se em filiação direta com o deus: o povo deve segui-lo. [...] Por onde quer que passe um déspota e o seu exército, tomam parte do seu cortejo doutores, padres, escribas, funcionários. [...] E esta nova aliança não é nem um tratado nem um contrato. Porque o que é suprimido não é o antigo regime das alianças laterais e das filiações extensas, mas tão somente o seu caráter determinante. Elas subsistem mais ou menos modificadas, mais ou menos arranjadas pelo grande paranoico, pois elas fornecem a matéria da mais-valia. É disto que advém o caráter específico da produção asiática: as comunidades rurais autóctones subsistem, continuam a produzir, a inscrever, a consumir; e o Estado só tem de ocupar-se com elas. As engrenagens da máquina de linhagem territorial subsistem, mas são apenas peças trabalhadoras da máquina estatal. Os objetos, os órgãos, as pessoas e os grupos mantêm, pelo menos, uma parte da sua codificação intrínseca, mas estes fluxos codificados do antigo regime acham-se sobrecodificados pela unidade transcendente que se apropria da mais-valia. [...] É todo o sistema primitivo que se acha mobilizado, requisitado por uma potência superior, subjugado por forças novas exteriores, posto a serviço de outras metas. (p. 255, 256, 259 e 260).


Em primeiro lugar, o grafismo se alinha, assenta-se sobre a voz e devém escrita. Ao mesmo tempo, ele induz a voz não mais como a da aliança, mas como a da nova aliança, voz fictícia do além que se exprime no fluxo de escrita como filiação direta. Estas duas categorias fundamentais despóticas são também o movimento do grafismo que se subordina à voz para, ao mesmo tempo, subordinar a voz a si, para suplantar a voz. Produz-se, desde então, um esmagamento do triângulo mágico: a voz já não canta, mas dita, edita; a grafia já não dança e para de animar os corpos, mas se escreve coagulada nas tábuas, nas pedras e nos livros; o olho se põe a ler (a escrita não acarreta, mas implica uma espécie de cegueira, uma perda de visão e de apreciação, e agora é o olho que sofre embora também adquira outras funções). Ou antes, não podemos dizer que o triângulo mágico esteja completamente esmagado: ele subsiste como base, como tijolo, no sentido em que o sistema territorial continua a funcionar no quadro da nova máquina. O triângulo deveio base para uma pirâmide cujas faces fazem convergir o vocal, o gráfico, o visual, em prol da eminente unidade do déspota. [...] Eis, então, em segundo lugar, o essencial: o assentamento da grafia sobre a voz fez saltar para fora da cadeia um objeto transcendente, voz muda de que toda a cadeia parece agora depender, e em relação à qual ela se lineariza. A subordinação do grafismo à voz induz uma voz fictícia das alturas que, inversamente, já não se exprime a não ser pelos signos de escrita que ela emite (revelação). [...] Talvez comece aí a questão “o que isto quer dizer?”, assim como os problemas de exegese começam a prevalecer sobre os do uso e da eficácia. O que ele quis dizer, o imperador, o deus? (p. 271 e 272).


O colonizador, por exemplo, abole a chefatura ou a utiliza para seus próprios fins (assim como muitas outras coisas, a chefatura ainda é pouco). O colonizador diz: seu pai é apenas seu pai, nada mais, assim como seu avô materno, não há porque tomá-los por chefes... [...] sua família é apenas sua família e nada mais, a reprodução social já não passa por aí, embora tenhamos justamente necessidade de sua família para fornecer um material que será submetido ao novo regime da reprodução... Então, sim, um quadro edipiano se esboça para os selvagens espoliados. [...] Vimos, todavia, que os colonizados permaneciam como um exemplo típico de resistência a Édipo: com efeito, é aí que a estrutura edipiana não chega a se fechar, e que seus termos continuam colados, seja em luta ou em cumplicidade, aos agentes da reprodução social opressiva (o Branco, o missionário, o cobrador de impostos, o exportador de bens, o homem notável da aldeia tornado agente da administração, os velhos que maldizem o Branco, os jovens que entram numa luta política etc.). Mas as duas coisas são verdadeiras: o colonizado resiste à edipianização e a edipianização tende a fechar-se sobre ele. [...] Quanto mais a reprodução social escapa em natureza e extensão aos membros do grupo, mais ela se assenta sobre eles ou os assenta sobre uma reprodução familiar restrita e neurotizada da qual Édipo é o agente. (p. 224 e 225)