Audioaula "Deleuze & Guattari - Micropolítica do fascismo", em 30/11/22


Quando a máquina torna-se planetária ou cósmica, os agenciamentos têm uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a tornar-se microagenciamentos. [...] A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança. (Mil Platôs, vol. 3, p. 93 e 94, 1ª edição, 1996, tradução de Suely Rolnik)


Se Kafka é o maior teórico da burocracia, é porque ele mostra como, num certo nível (mas qual? e que não é localizável), as barreiras entre repartições deixam de ser "limites precisos", mergulham num meio molecular que as dissolve, ao mesmo tempo que ele faz proliferar o chefe em microfiguras impossíveis de reconhecer, de identificar, e que são tão pouco discerníveis quanto centralizáveis: um outro regime que coexiste com a separação e a totalização dos segmentos duros. Diremos, da mesma forma, que o fascismo implica um regime molecular que não se confunde nem com os segmentos molares nem com sua centralização. Mas o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro, em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacional-socialista. Fascismo rural e fascismo de cidade ou de bairro, fascismo jovem e fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda e de direita, de casal, de família, de escola ou de repartição: cada fascismo se define por um microburaco negro, que vale por si mesmo e comunica com os outros, antes de ressoar num grande buraco negro central generalizado. […] Mesmo quando o Estado nacional-socialista se instala, ele tem necessidade da persistência desses microfascismos que lhe dão um meio de ação incomparável sobre as "massas". Daniel Guérin tem razão em dizer que se Hitler conquistou o poder mais do que o Estado Maior Alemão, foi porque dispunha em primeiro lugar de microorganizações que lhe davam "um meio incomparável, insubstituível, de penetrar em todas as células da sociedade", segmentaridade maleável e molecular, fluxos capazes da banhar cada gênero de células. Inversamente, se o capitalismo acabou por considerar a experiência fascista catastrófica, se ele preferiu aliar-se ao totalitarismo estalinista, muito mais sensato e tratável para o seu gosto, é que este tinha uma segmentaridade e uma centralização mais clássicas e menos fluentes. É uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso mais do que um organismo totalitário. […] Não há senão o microfascismo para dar uma resposta à questão global: por que o desejo deseja sua própria repressão, como pode ele desejar sua repressão? É verdade que as massas não suportam passivamente o poder; elas tampouco “querem” ser reprimidas, numa espécie de histeria masoquista e tampouco estão enganadas por um engodo ideológico. Mas o desejo nunca é separável de agenciamentos complexos que passam necessariamente por níveis moleculares, microformações que moldam de antemão as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações, as semióticas, etc. O desejo nunca é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina eventualmente o desejo de já ser fascista. As organizações de esquerda não são as últimas a secretar seus microfascismos. É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas. (Mil Platôs, vol. 3, p. 91 a 93, 1ª edição, 1996, tradução de Suely Rolnik)


Uma estranha observação de Virilio nos dá a pista: no fascismo, o Estado é muito menos totalitário do que suicidário. Existe, no fascismo, um niilismo realizado. É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazistas anunciavam para a Alemanha o que traziam: núpcias e morte ao mesmo tempo, inclusive a sua própria morte e a dos alemães. […] É sempre possível dizer que se trata de um discurso confuso e de ideologia, nada mais que ideologia. [...] Preferimos seguir J. P. Faye, quando ele se interroga sobre a formação precisa dos enunciados nazistas que funcionam tanto no político, no econômico, quanto na mais absurda conversa. Reencontramos sempre nesses enunciados o grito "estúpido e repugnante" Viva a morte!, até no nível econômico, onde a expansão do rearmamento substitui o aumento do consumo, e onde o investimento se desloca dos meios de produção para os meios de pura destruição. (Mil Platôs, vol. 3, p. 113 e 114, 1ª edição, 1996, tradução de Suely Rolnik)