Audioaula "Nietzsche - Aposentado (o último papa)", em 12/05/17


Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 245 a 249.  


Aposentado


Não muito tempo depois de livrar-se do feiticeiro, Zaratustra viu novamente uma pessoa sentada à beira de seu caminho, um homem alto, de preto, com o rosto magro e pálido: esse o incomodou enormemente. “Ai”, falou a seu coração, “eis ali a aflição mascarada, do tipo sacerdotal, me parece: que querem eles em meu reino?

O quê? Mal escapei do feiticeiro e mais um nigromante me aparece no caminho, —

— um desses bruxos que usam as mãos, um taciturno milagreiro da graça de Deus, ungido caluniador do mundo, que o Diabo bem podia levar?

Mas o Diabo nunca está no lugar certo: sempre chega muito tarde, esse maldito anão de pés virados!” —

Assim amaldiçoou Zaratustra, com impaciência no coração, e pensou em como poderia, olhando para o outro lado, passar pelo homem de preto; mas aconteceu de forma diferente. Pois no mesmo instante o homem sentado o havia enxergado; e, de modo semelhante a alguém tocado por uma sorte imprevista, levantou-se num salto e abordou Zaratustra.

“Quem quer que sejas, ó andarilho”, disse ele, “ajuda a alguém que se extraviou e que procura, a um velho que pode sofrer algum mal aqui!

Este mundo me é alheio e distante, e já escutei animais selvagens uivando; além disso, aquele que poderia me dar proteção não está mais aqui.

Eu buscava o último homem piedoso, um santo e eremita que, sozinho em sua floresta, não havia ainda escutado o que hoje o mundo inteiro sabe.”

“E o que sabe hoje o mundo inteiro?”, perguntou Zaratustra. “Seria, por acaso, que já não vive mais o velho Deus em quem o mundo inteiro acreditou um dia?”

“Tu o dizes”, respondeu o velho, entristecido. “Eu servi esse velho Deus até a sua hora final.

Mas agora estou aposentado, sem senhor, e, contudo, não estou livre e não tenho um minuto de alegria, exceto em recordações.

Por isso vim a estas montanhas, para enfim celebrar novamente uma festa, como convém a um velho papa e pai da Igreja: pois, fica sabendo, eu sou o último papa! — uma festa de piedosas recordações e cultos divinos.

Mas agora ele próprio está morto, o mais pio dos homens, aquele santo da floresta que continuamente louvava seu Deus, cantando e sussurrando.

Não mais o encontrei, ao encontrar sua cabana, — e sim dois lobos que uivavam por causa de sua morte — pois todos os bichos o amavam. Então fui embora dali.

Teria vindo inutilmente a estas florestas e montanhas? Então meu coração decidiu que eu buscaria outro, o mais piedoso de todos aqueles que não acreditam em Deus — que eu buscaria Zaratustra!”

Assim falou o ancião, e olhou de modo penetrante para aquele que estava à sua frente; mas Zaratustra pegou a mão do velho papa e longamente a observou, com admiração.

“Olha, ó venerável”, disse então, “que mão bela e comprida! É a mão de alguém que sempre repartiu bênçãos. Mas neste momento ela segura aquele que buscas, a mim, Zaratustra.

É Zaratustra, o sem-deus, quem aqui fala: quem é mais sem-deus do que eu, para que eu possa fruir dos seus ensinamentos?” —

Assim falou Zaratustra, e atravessou com seu olhar os pensamentos e intenções ocultas do velho papa. Enfim, este começou a dizer:

“Quem mais o amava e possuía, esse agora foi quem mais o perdeu —:

— vê, não sou eu agora, de nós dois, o mais sem-deus? Mas quem pode se alegrar disso?” —

“Tu, que o serviste até o fim”, perguntou Zaratustra, pensativo, depois de um profundo silêncio, “sabes como ele morreu? É verdade o que se diz, que a compaixão o sufocou,

— que ele viu o homem pendurado na cruz e não suportou, que o amor ao homem veio a ser seu inferno e, afinal, sua morte?” — —

Mas o velho papa não respondeu, apenas olhou para o lado, timidamente, com uma expressão dolorosa e sombria.

“Deixa que se vá”, disse Zaratustra após uma longa reflexão, ainda olhando fixamente os olhos do velho.

“Deixa que se vá, ele acabou. E, embora te faça honra só falares bem desse morto, sabes tão bem quanto eu quem era; e que estranhos caminhos ele seguia.”

“Falando entre três olhos”, disse o velho papa com ar divertido (pois ele era cego de um olho), “em coisas de Deus sou mais ilustrado que até mesmo Zaratustra — e com todo o direito.

Meu amor serviu a ele por muitos anos, minha vontade sempre acompanhou a sua. Mas um servidor sabe tudo, inclusive coisas que o seu senhor esconde de si próprio.

Era um deus escondido, cheio de segredos. Em verdade, até um filho lhe chegou por caminhos duvidosos. No portal de sua fé se acha o adultério.

Quem o exalta como deus do amor não tem o amor em alta conta. Não pretendia também ser juiz esse deus? Mas quem ama, ama acima do prêmio e do castigo.

Quando ele era jovem, esse deus do Oriente, era duro e vingativo, e construiu um inferno para o gozo de seus favoritos.

Afinal, porém, tornou-se velho, brando, mole e compassivo, mais semelhante a um avô do que a um pai, e ainda mais semelhante a uma vovó trôpega.

Ficava sentado, murcho, em seu canto da estufa, afligindo-se com a fraqueza das pernas, cansado do mundo, de vontade cansada, e um dia asfixiou-se com a compaixão demasiada.” — —

“Ó velho papa”, interveio Zaratustra, “viste isso com os próprios olhos? Pode ter acontecido assim; assim e também de outra forma. Quando os deuses morrem, morrem sempre muitos tipos de morte.

Mas muito bem! Desse modo ou daquele, desse e daquele — ele se foi! Ele ofendia o gosto de meus olhos e ouvidos; não gostaria de dizer coisa pior sobre ele.

Eu amo todos os que têm olhar claro e fala direta. Mas ele — tu sabes, velho sacerdote, havia algo da tua espécie nele, do tipo sacerdotal — ele era equívoco.

Também era pouco nítido. Como ele se irritava conosco, esse grande colérico, porque o entendíamos mal! Mas por que não falava com mais limpidez?

E, se o defeito estava em nossos ouvidos, por que nos deu ouvidos que o ouviam mal? Se havia barro em nossos ouvidos, muito bem! quem o pôs lá?

Muita coisa lhe saiu malograda, a esse oleiro que não terminou o aprendizado! Mas ele se vingar de suas vasilhas e criaturas por lhe terem saído mal — isso foi um pecado contra o bom gosto.

Também na devoção há um bom gosto: foi este que disse finalmente: ‘Fora com um deus assim! Antes nenhum deus, antes fazer o destino com a própria mão, antes ser tolo, antes ser deus em si mesmo!’.”

— “Que estou ouvindo?”, falou o papa, de orelhas em pé; “ó Zaratustra, és mais devoto do que crês, com tal descrença! Algum deus em ti te converteu a esse ateísmo.

Não é tua própria devoção que não te deixa mais acreditar num deus? Tua imensa retidão te levará até mesmo além do bem e do mal!

Pois olha: o que foi reservado para ti? Tens olhos, mãos e boca que foram eternamente predestinados a abençoar. Não se abençoa somente com as mãos.

Em tua vizinhança, embora pretendas ser o mais sem-deus entre os homens, sinto um secreto, sagrado aroma de prolongadas bênçãos: traz-me bem- e mal-estar ao mesmo tempo.

Deixa-me ser teu hóspede por uma só noite, ó Zaratustra! Em nenhum outro lugar da terra me sentirei melhor do que em tua casa!” —

“Amém! Assim seja!”, falou Zaratustra com grande admiração, “ali está o caminho para a caverna de Zaratustra.

De bom grado, verdadeiramente, eu mesmo te acompanharia até lá, ó venerável, pois amo todos os homens devotos. Agora, porém, um grito de socorro urgente me chama.

Em minha área ninguém deve sofrer nenhum dano. Minha caverna é um bom porto. E o que eu mais gostaria seria deixar novamente cada pessoa triste em terra firme e com pés firmes.

Mas quem tiraria dos teus ombros a melancolia? Sou fraco demais para isso. Muito tempo, em verdade, podemos esperar, até que alguém ressuscite teu Deus.

Pois esse velho Deus não vive mais: está completamente morto.” —

Assim falou Zaratustra.