Audioaula "Nietzsche - Da virtude dadivosa", em 07/04/15
Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 72 a 76.
Da virtude dadivosa
1.
Quando Zaratustra se despediu da cidade cara ao seu coração, cujo nome era A Vaca Malhada, seguiram-no muitos que se denominavam seus discípulos, fazendo-lhe companhia. Assim chegaram a uma encruzilhada: então Zaratustra lhes disse que desejava continuar sozinho; pois era afeiçoado a andar sozinho. Ao se despedir, porém, seus discípulos lhe deram um bastão, em cujo cabo dourado havia uma serpente enrolada em torno do sol. Zaratustra se alegrou com o bastão e nele se apoiou; então falou assim aos seus discípulos:
Dizei-me: como adquiriu o ouro o valor mais alto? Por ser incomum, inútil, reluzente e de brilho suave; por sempre se dar.
Apenas como imagem da mais alta virtude adquiriu o ouro o valor mais alto. O olhar daquele que dá reluz como o ouro. O brilho do ouro reconcilia o sol e a lua.
Incomum é a virtude mais alta, e inútil, reluzente e de brilho suave: uma virtude dadivosa é a virtude mais alta.
Em verdade, eu vos entendo, meus discípulos: vós buscais, como eu, a virtude dadivosa. Que podeis ter em comum com gatos e lobos?
Tendes sede de tornar-vos vós mesmos sacrifícios e dádivas: daí a vossa sede de acumular todas as riquezas em vossa alma.
Insaciável busca a vossa alma por tesouros e joias, pois vossa virtude é insaciável na vontade de dar.
Obrigais todas as coisas a ir para vós e estar em vós, para que venham a refluir da vossa fonte como dádivas do vosso amor.
Em verdade, ladrão de todos os valores se tornará esse amor dadivoso; mas eu declaro sadio e sagrado esse egoísmo.
Há um outro egoísmo, demasiado pobre, faminto, que sempre deseja furtar, o egoísmo dos doentes, o egoísmo doente.
Com o olhar do gatuno olha para tudo que brilha; com a avidez da fome mede aquele que tem bastante de-comer; e sempre se avizinha furtivamente da mesa dos que dão.
O que fala através dessa cobiça é doença, e invisível degeneração; a gatuna avidez desse egoísmo fala de um corpo enfermo.
Dizei-me, irmãos: o que é para nós ruim e pior que tudo? Não é a degeneração? — E sempre intuímos degenerescência ali onde falta a alma dadivosa.
Para cima vai nosso caminho, além da espécie, rumo à superespécie. Mas um horror, para nós, é o senso degenerante, que diz: “Tudo para mim”.
Para cima voa nosso senso, assim é ele um símbolo do nosso corpo, o símbolo de uma elevação. Os símbolos de tais elevações são os nomes das virtudes.
Assim o corpo atravessa a história, vindo a ser e lutando. E o espírito — que é ele para o corpo? Arauto, companheiro e eco de suas lutas e vitórias.
Símbolos são todos os nomes do bem e do mal: não enunciam, apenas acenam. É tolo quem deles espera o saber!
Atentai, irmãos, para cada momento em que vosso espírito quer falar por símbolos: aí está a origem da vossa virtude.
Elevado está aí vosso corpo, e ressuscitado; com seu enlevo arrebata o espírito, para que se torne criador, estimador, amador e de tudo benfeitor.
Quando o vosso coração palpita, largo e pleno como um rio, bênção e perigo para os habitantes das margens: aí está a origem da vossa virtude.
Quando vos elevais acima do elogio e da censura, e vossa vontade quer em tudo mandar, como a vontade de um amante: aí está a origem da vossa virtude.
Quando desprezais o agradável e o leito mole, e não podeis deitar-vos longe o bastante dos molengas: aí está a origem da vossa virtude.
Quando quereis com um só querer, e esse afastamento de toda necessidade se chama necessidade para vós: eis a origem da vossa virtude.
Em verdade, é ela um novo bem e mal! Em verdade, é um novo, profundo rumor, a voz de uma nova fonte!
Essa nova virtude é poder; é um pensamento dominante e, em torno dele, uma alma sagaz: um sol dourado e, em torno dele, a serpente do conhecimento.
2.
Nesse ponto, Zaratustra silenciou por um momento e olhou para seus discípulos com amor. Então prosseguiu falando — e sua voz estava mudada:
Permanecei fiéis à terra, irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor dadivoso e vosso conhecimento sirvam ao sentido da terra! Assim vos peço e imploro.
Não os deixeis voar para longe do que é terreno e bater com as asas nas paredes eternas! Oh, sempre houve tanta virtude extraviada!
Trazei, como eu, a virtude extraviada de volta para a terra — sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido — um sentido humano!
Uma centena de vezes, até agora, extraviaram-se e enganaram-se tanto o espírito como a virtude. Ah, em nosso corpo ainda vive todo esse delírio e engano: aí tornou-se ele corpo e vontade.
Uma centena de vezes, até agora, extraviaram-se e enganaram-se tanto o espírito como a virtude. Sim, uma tentativa foi o homem. Ah, quanta ignorância e quanto erro se encarnaram em nós!
Não apenas a razão de milênios — também a sua loucura irrompe em nós. É perigoso ser herdeiro.
Ainda lutamos palmo a palmo contra o gigante Acaso, e sobre toda a humanidade reinou até agora o absurdo, o sem-sentido.
Que o vosso espírito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra, irmãos: e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por vós! Por isso deveis ser combatentes! Para isso deveis ser criadores!
Sabendo purifica-se o corpo; tentando com saber ele se eleva; para o homem do conhecimento, todos os instintos se tornam sagrados; para o elevado, a alma se torna alegre.
Médico, ajuda a ti mesmo: assim ajudarás também teu doente. Seja essa a tua melhor ajuda, que ele veja com seus olhos aquele que cura a si próprio.
Há mil veredas que não foram percorridas; mil saúdes e ilhas recônditas da vida. Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra humana.
Velai e escutai, ó solitários! Do futuro chegam ventos com misteriosas batidas de asas; e boas-novas alcançam ouvidos delicados.
Vós, solitários de hoje, vós, que viveis à parte, deveis um dia formar um povo: de vós, que escolhestes a vós mesmos, deverá nascer um povo eleito: — e dele o super-homem.
Em verdade, um local de cura ainda se tornará a terra! E já a envolve um novo aroma, um aroma que traz saúde — e uma nova esperança!
3.
Após dizer essas palavras, Zaratustra silenciou, como alguém que ainda não disse a sua última palavra. Longamente sopesou o bastão, hesitante; por fim, falou assim — e sua voz estava mudada:
Agora prossigo só, meus discípulos! Ide vós também agora, sozinhos! Assim desejo eu.
Em verdade, eu vos aconselho: afastai-vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! Mais ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.
O homem do conhecimento deve não apenas poder amar seus inimigos, mas também odiar seus amigos.
Retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos. E por que não quereis arrancar louros da minha coroa?
Vós me venerais; mas se um dia vossa veneração tombar? Cuidai para que não vos esmague uma estátua!
Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois os meus crentes: mas que importam todos os crentes?
Ainda não havíeis procurado a vós mesmos: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças.
Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós.
Em verdade, com outros olhos, irmãos, buscarei então os que perdi; com outro amor eu então vos amarei.
E um dia sereis novamente meus amigos e filhos de uma só esperança: então estarei convosco pela terceira vez, para juntos celebrarmos o grande meio-dia.
E este é o grande meio-dia: quando o homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã.
Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia.
“Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem.” — que esta seja um dia, no grande meio-dia, a nossa derradeira vontade! —
Assim falou Zaratustra.