Audioaula "Nietzsche - Da virtude que apequena", em 06/10/17

 

Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 159 a 164. 



Da virtude que apequena


1.

Quando Zaratustra novamente se achou em terra firme, não foi diretamente para sua montanha e sua caverna, e sim percorreu muitos caminhos e fez muitas perguntas e se informou sobre isso e aquilo, de tal modo que disse de si mesmo, gracejando: “Eis um rio que faz numerosas curvas e retorna à fonte!”. Pois ele queria saber o que havia sucedido com o ser humano naquele meio-tempo: se este se tornara maior ou menor. E certa vez enxergou uma fileira de casas novas; admirou-se, e disse:

Que significam essas casas? Em verdade, nenhuma grande alma as pôs ali como símbolos de si própria!

Uma criança idiota as tirou de sua caixa de brinquedos? Então, que outra criança as pusesse de volta na caixa!

E esses aposentos e câmaras: será que homens podem entrar e sair deles? Parecem-me feitos para bonecas de seda; ou para gatos gulosos que também se deixam degustar.

E Zaratustra permaneceu parado e refletiu. Por fim disse, com tristeza: “Tudo ficou menor!

Em toda parte vejo portões mais baixos: quem é de minha espécie ainda passa por eles, mas — tem de se abaixar!

Oh, quando estarei de volta à minha terra, onde não mais terei de me abaixar — de me abaixar diante dos pequenos!” — E Zaratustra suspirou e olhou na distância. — Nesse mesmo dia, porém, ele proferiu seu discurso sobre a virtude que apequena.


2.

Ando em meio a esse povo e mantenho os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não tenha inveja de suas virtudes.

Eles procuram me morder, porque lhes falo que para pessoas pequenas são necessárias virtudes pequenas — e porque me é difícil aceitar que pessoas pequenas sejam necessárias.

Ainda pareço o galo num quintal novo, que mesmo as galinhas procuram bicar; mas nem por isso levo a mal essas galinhas.

Sou polido com eles e com todos os pequenos aborrecimentos; ser espinhoso com o que é pequeno parece-me uma sabedoria de ouriço.

Todos eles falam de mim, quando se sentam ao redor do fogo, à noite — eles falam de mim, mas ninguém pensa — em mim!

É este o novo silêncio que aprendi: seu barulho a meu redor estende um manto sobre meus pensamentos.

Eles fazem alvoroço entre si: “Que quer de nós essa nuvem sombria? Cuidemos que não nos traga uma peste!”.

E há pouco uma mulher puxou para si o filho, que vinha em direção a mim: “Levai as crianças!”, gritou ela, “olhos assim queimam as almas das crianças”.

Eles tossem quando falo: acham que tossir é uma objeção contra ventos fortes — nada adivinham do rugir de minha felicidade!

“Ainda não temos tempo para Zaratustra” — assim objetam; mas que importa um tempo que “não tem tempo” para Zaratustra?

E, mesmo quando me elogiam: como poderia eu adormecer com o seu louvor? Um cinturão de espinhos é para mim seu louvor: arranha-me também quando o retiro.

E isto igualmente aprendi com eles: o louvador se porta como se retribuísse, mas, na verdade, quer receber mais!

Perguntai a meu pé se lhe agrada sua maneira de louvar e atrair! Em verdade, nesse compasso e tique-taque ele não gosta de dançar nem de ficar parado.

Para a pequena virtude gostariam de me atrair e louvar; ao tique-taque da pequena virtude gostariam de persuadir meu pé.

Ando em meio a esse povo e mantenho os olhos abertos: eles ficaram menores e se tornam cada vez menores: — mas isto se deve à sua doutrina da felicidade e da virtude.

É que são modestos também na virtude — pois querem o bem-estar. Mas somente a virtude modesta condiz com o bem-estar.

Sem dúvida, também aprendem a caminhar à sua maneira, e caminhar para a frente: a isso chamo seu claudicar —. Assim se tornam um obstáculo para todo aquele que tem pressa. E mais de um anda para a frente e olha para trás, com o pescoço rijo: nesses gosto de dar um encontrão.

Pé e olho não devem mentir, nem desmentir um ao outro. Mas há muita mentira entre as pessoas pequenas.

Alguns deles querem, mas a maioria é apenas objeto do querer. Alguns deles são autênticos, mas a maioria é de maus atores.

Há atores sem o saber entre essas pessoas, e atores sem o querer —, os autênticos são sempre raros, em especial os atores autênticos.

Há pouca virilidade aqui: daí se masculinizarem suas mulheres. Pois apenas quem for viril o suficiente irá, na mulher, — redimir a mulher.

E esta hipocrisia me pareceu a pior entre eles: que também os que mandam simulam as virtudes dos que servem.

“Eu sirvo, tu serves, nós servimos” — assim também reza, aqui, a hipocrisia dos dominantes — e que infelicidade, quando o primeiro senhor é apenas o primeiro servidor!

Ah, também nas suas hipocrisias se extraviou a curiosidade de meu olhar; e bem adivinhei toda a sua felicidade de moscas e seu zumbir junto a vidraças banhadas de sol.

Tanta bondade, tanta fraqueza enxergo eu. Tanta justiça e compaixão, tanta fraqueza.

Redondos, corretos e bondosos são eles uns com os outros, tal como grãos de areia são redondos, corretos e bondosos uns com os outros.

Modestamente abraçar uma pequena felicidade — a isso chamam “resignação”! E nisso já olham modestamente de soslaio para uma nova pequena felicidade.

No fundo, simploriamente querem uma coisa acima de tudo: que ninguém lhes faça mal. Assim, são obsequiosos com todos e lhes fazem bem.

Isso, porém, é covardia — embora se chame “virtude”. — 

E, se alguma vez falam rudemente, essas pessoas pequenas: eu ouço nisso apenas a sua rouquidão — pois qualquer corrente de ar as enrouquece.

São sagazes, suas virtudes têm dedos sagazes. Mas faltam-lhes os punhos, seus dedos não sabem esconder-se atrás de punhos.

Para elas, virtude é o que torna modesto e manso: com ela transformaram o lobo em cão, e o próprio homem, no melhor animal doméstico do homem.

“Pomos nossa cadeira no meio” — diz-me seu sorriso complacente —, “tão distante de lutadores moribundos como de porcos satisfeitos.”

Isso, porém, é mediocridade: embora se chame comedimento.


3.

Ando em meio a esse povo e deixo cair algumas palavras: mas eles não sabem receber nem guardar.

Eles se admiram de que eu não tenha vindo censurar prazeres e vícios; e, em verdade, tampouco vim para acautelar contra batedores de carteiras!

Eles se admiram de que eu não esteja pronto a afinar e aguçar sua esperteza: como se já não tivessem bastantes cabeças espertas, cujas vozes arranham como lápis de lousa!

E, quando eu grito: “Maldizei todos os covardes demônios em vós, que gostam de choramingar, juntar as mãos e rezar”, então eles gritam: “Zaratustra é sem-deus”.

E especialmente seus mestres da resignação gritam isso —; mas justamente a esses eu amo gritar no ouvido: “Sim, sou Zaratustra, o sem-deus!”.

Esses mestres da resignação! Onde quer que seja pequeno, doentio e sarnento eles se enfiam, como piolhos; e apenas meu nojo me impede de esmagá-los.

Muito bem! Eis a minha prédica para os seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o sem-deus, que diz “quem é mais sem-deus do que eu, para desfrutar de seu ensinamento?”.

Eu sou Zaratustra, o sem-deus: onde posso encontrar meus iguais? São meus iguais todos aqueles que dão a si mesmos sua vontade e se desfazem de toda resignação.

Eu sou Zaratustra, o sem-deus: chego a cozinhar todo acaso em minha panela. E somente quando ele está bem cozido eu lhe dou boas-vindas, como meu alimento.

E, em verdade, mais de um acaso me chegou imperiosamente: mas ainda mais imperiosamente lhe falou minha vontade — e logo estava ele de joelhos, a suplicar —

— a suplicar abrigo e coração junto a mim, e a dizer lisonjeiramente: “Vê, Zaratustra, somente o amigo procura o amigo!” —

Mas para que falar onde ninguém tem meus ouvidos? Assim, quero gritar aos quatro ventos:

Vós vos tornais cada vez menores, ó gente pequena! Desmoronais, ó amantes do bemestar! Ainda perecereis —

— de vossas muitas pequenas virtudes, de vossas muitas pequenas abstenções, de vossa muita pequena resignação!

Demasiado macio, demasiado indulgente: assim é vosso terreno! Para tornar-se grande, porém, uma árvore

deve lançar duras raízes em duras rochas!

Também o que deixais de fazer é parte do tecido do futuro dos homens; também vosso nada é uma teia de aranha e uma aranha que vive do sangue do futuro.

E, quando recebeis, é como se furtásseis, ó pequenos virtuosos; mas ainda entre os malandros diz a honra: “Só se deve furtar quando não se pode roubar”.

“É dado” — também isso é um ensinamento da entrega. Mas eu vos digo, ó amantes do bem-estar: é tomado, e cada vez mais será tomado de vós!

Ah, se afastásseis de vós todo meio querer e vos tornásseis decididos à indolência tanto quanto à ação!

Ah, se compreendêsseis minhas palavras: “Fazei então o que quiserdes — mas primeiramente sede capazes de querer!”.

“Amai então vosso próximo como a vós mesmos — mas sede antes aqueles que amam a si mesmos

— que amam com o grande amor, que amam com o grande desprezo!” Assim fala Zaratustra, o sem-deus. —

Mas para que falar onde ninguém tem meus ouvidos? Aqui ainda é uma hora cedo demais para mim.

Eu sou meu próprio precursor em meio a esse povo, meu próprio canto do galo pelas ruas escuras.

Mas a hora deles está chegando! E também a minha chega! A cada hora eles se tornam menores, mais pobres, mais infecundos — pobres ervas! pobre terreno!

E logo estarão como capim seco e estepe e, em verdade, cansados de si mesmos — e sedentos de fogo mais que de água!

Ó abençoada hora do raio! Ó mistério antes do meio-dia! — Um dia farei deles fogos galopantes e arautos com línguas de fogo: —

— deverão anunciar um dia, com línguas de fogo: Está chegando, está próximo o grande meio-dia!

Assim falou Zaratustra.