Audioaula "Nietzsche - Das moscas do mercado", em 24/08/17


Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 51 a 53. 


Das moscas do mercado


Foge para a tua solidão, meu amigo! Vejo-te atordoado pelo barulho dos grandes homens e picado pelos ferrões dos pequenos.

A floresta e o rochedo sabem calar-se dignamente contigo. Volta a semelhar-te à árvore que amas, a de amplos galhos: atenta e silenciosa pende ela sobre o mar.

Onde cessa a solidão, ali começa o mercado; e onde começa o mercado, ali também começa o barulho dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas.

Nada valem as melhores coisas, no mundo, sem alguém que primeiro as apresente: o povo chama “grandes homens” a esses apresentadores.

O povo pouco compreende a grandeza, isto é: a criação. Mas é sensível aos apresentadores e atores das grandes causas.

O mundo gira ao redor dos inventores de novos valores: — gira de modo invisível. Mas ao redor dos atores giram o povo e a fama: é esse o caminho do mundo.

Tem espírito o ator, mas um espírito de pouca consciência. Acredita sempre naquilo com que faz acreditar mais firmemente — acreditar nele!

Amanhã tem ele uma nova fé, e depois de amanhã, uma mais nova. Tem sentidos rápidos, como o povo, e faro caprichoso.

Derrubar — isto significa para ele: demonstrar. Enlouquecer — isto significa para ele: convencer. E o sangue é, para ele, o melhor dos argumentos.

Uma verdade que penetra apenas em ouvidos delicados ele chama de mentira e nada. Na verdade, acredita apenas em deuses que fazem grande ruído no mundo!

Cheio de solenes bufões está o mercado — e o povo se gaba de seus grandes homens: são, para ele, os senhores da hora.

Mas a hora urge para eles: então eles urgem contigo. E também de ti querem um sim ou um não. Ai de ti, queres pôr teu assento entre o a favor e o contra?

Não sintas inveja desses homens incondicionais e prementes, ó amante da verdade! Jamais a verdade andou de braço dado com um homem incondicional.

Por causa desses homens súbitos, volta para a sua segurança: apenas no mercado alguém é assaltado com “sim?” ou “não?”.

Lento é o vivenciar de todas as fontes profundas: muito têm de esperar, até saberem o que caiu em seu fundo.

Longe do mercado e da fama se passa tudo que é grande: longe do mercado e da fama habitaram, desde sempre, os inventores de novos valores.

Foge, meu amigo, para a tua solidão: vejo-te picado por moscas venenosas. Foge para onde o ar é rude e forte!

Foge para a tua solidão! Viveste demasiadamente próximo aos pequenos e miseráveis. Foge da sua invisível vingança! Em relação a ti, eles não são outra coisa senão vingança.

Não mais levantes o braço contra eles! São inúmeros, e espantar moscas não é tua sina.

São inúmeros esses pequenos e miseráveis; e mais de um orgulhoso edifício já pereceu graças a gotas de chuva e ervas daninhas.

Não és uma pedra, mas já foste minado por muitas gotas. Ainda racharás e te despedaçarás com tantas gotas.

Vejo-te fatigado por causa das moscas venenosas, vejo-te arranhado e sangrando em cem lugares; e teu orgulho não deseja sequer se irritar.

Sangue desejam de ti, com toda a inocência. Sangue é o que anseiam suas almas exangues — e então picam, com toda a inocência.

Mas tu, ó profundo, sofres profundamente também das pequenas feridas; e, ainda antes que sarasses, o mesmo verme venenoso rastejava sobre tua mão.

Demasiado orgulhoso me pareces para matar esses gulosos. Mas cuida para que seja tua fatalidade suportar toda a sua venenosa injustiça!

Eles também zumbem ao teu redor com seu louvor: a importunação é seu louvor. Eles querem a proximidade de tua pele e de teu sangue.

Eles te adulam como a um deus ou um diabo; choramingam diante de ti, como diante de um deus ou de um diabo. Que importa? São aduladores e choramingueiros, nada mais.

Também costumam fazer-se de amáveis contigo. Mas esta sempre foi a esperteza dos covardes. Sim, os covardes são espertos!

Eles pensam muito em ti, com sua alma estreita — sempre és preocupante para eles! Tudo aquilo em que se pensa muito se torna preocupante.

Eles te castigam por todas as tuas virtudes. Perdoam-te completamente apenas — teus erros.

Por seres manso e de espírito justo, dizes: “Eles não têm culpa de sua pequena existência”. Mas sua alma estreita pensa: “Culpada é toda grande existência”.

Ainda que sejas manso com eles, sentem-se desprezados por ti; e pagam teu benefício com ocultos malefícios.

Teu lacônico orgulho sempre repugna ao seu gosto; eles se regozijam, se alguma vez és modesto o bastante para ser vaidoso.

Aquilo que notamos em alguém é também o que nele inflamamos. Por isso, guarda-te dos pequenos!

Diante de ti eles se sentem pequenos, e sua baixeza arde e incandesce contra ti, em invisível vingança.

Não percebeste como muitas vezes emudeciam ao te aproximares, e como sua força os abandonava, como a fumaça de um fogo que se extingue?

Sim, meu amigo, és a má consciência para teus próximos: pois eles são indignos de ti. Por isso te odeiam e bem gostariam de chupar teu sangue.

Teus próximos sempre serão moscas venenosas; o que é grande em ti — justamente isso deve torná-los mais venenosos e cada vez mais moscas.

Foge, meu amigo, para a tua solidão e para onde o ar é rude e forte! Não é tua sina espantar moscas. —

Assim falou Zaratustra.