Audioaula "Nietzsche - Do caminho do criador", em 25/02/14
Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 60 a 63.
Do caminho do criador
Queres ir para a solidão, meu irmão? Queres buscar o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco mais e me escuta.
“Quem busca facilmente se perde. Todo isolamento é culpa”: assim fala o rebanho. E durante muito tempo pertenceste ao rebanho.
A voz do rebanho ainda ressoará dentro de ti. E, quando disseres “Já não tenho a mesma consciência que vós”, isso será um lamento e uma dor.
Vê, essa dor mesma foi gerada por tal consciência, e o último reluzir dessa consciência ainda arde na tua aflição.
Mas queres seguir o caminho da tua aflição, que é o caminho para ti mesmo? Então me mostra teu direito e tua força para isso!
És uma nova força e um novo direito? Um primeiro movimento? Uma roda que gira por si mesma? Podes também obrigar estrelas a girar ao teu redor?
Oh, há tanta avidez das alturas! Há tantas convulsões de ambiciosos! Mostra-me que não és um dos ávidos e ambiciosos!
Oh, há tantos pensamentos grandes que não fazem mais que um fole: enchem e tornam mais vazio.
Dizes ser livre? Teu pensamento dominante quero ouvir, e não que escapaste de um jugo.
És um desses a quem foi permitido escapar de um jugo? Há alguns que lançaram fora seu último valor, ao lançar fora sua obrigação de servir.
Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra! Mas teus olhos me devem claramente dizer: livre para quê?
Podes dar a ti mesmo teu mal e teu bem e erguer tua vontade acima de ti como uma lei? Podes ser de ti mesmo juiz e o vingador de tua lei?
Terrível é estar a sós com o juiz e vingador de sua própria lei. Assim uma estrela é arremessada ao espaço vazio e ao gélido sopro do estar-só.
Hoje ainda sofres dos muitos, tu que és um: hoje ainda tens tua coragem inteira e tuas esperanças.
Mas um dia tua solidão te cansará, um dia teu orgulho se dobrará e tua coragem rangerá os dentes. Gritarás então um dia: “Estou só!”.
Um dia deixarás de ver tua alteza e verás perto demais tua baixeza; teu próprio sublime te amedrontará como um fantasma. Gritarás então um dia: “Tudo é falso!”.
Há sentimentos que buscam matar o solitário; se não o conseguem, eles próprios têm de morrer! Mas és capaz disso, de ser um assassino?
Já conheces a palavra “desprezo”, irmão? E o tormento da tua justiça, de ser justo com os que te desprezam?
Obrigas muitos a mudar de ideia acerca de ti; isso eles põem duramente em tua conta. Chegaste perto deles e passaste: isso jamais te perdoam.
Tu os ultrapassas: mas, quanto mais alto sobes, tanto menor te vê o olho da inveja. Mais que tudo, porém, é odiado aquele que voa.
“Como poderíeis ser justos comigo?” — tens que dizer — “escolho vossa injustiça como a parte que me coube.”
Injustiça e sujeira arremessam eles no solitário: mas, se queres ser uma estrela, meu irmão, não deves, por causa disso, brilhar menos para eles!
E guarda-te dos bons e justos! Eles crucificam de bom grado aqueles que inventam sua própria virtude — eles odeiam o solitário.
Guarda-te também da santa simplicidade! É ímpio, para ela, tudo que não é simples; ela também brinca de bom grado com o fogo — das fogueiras.
E guarda-te também dos acessos de teu amor! Com demasiada rapidez o solitário estende a mão àquele que encontra.
Há pessoas a quem não deves dar a mão, mas apenas a pata: e desejo que tua pata tenha também garras.
Mas o pior inimigo que podes encontrar será sempre tu mesmo; espreitas a ti mesmo nas cavernas e florestas.
Ó solitário, tu percorres o caminho para ti mesmo! E teu caminho passa diante de ti mesmo e dos teus sete demônios!
Herege serás para ti mesmo, e feiticeira, vidente, tolo, ímpio e malvado.
Tens de querer queimar em tua própria chama: como te renovarias, se antes não te tornasses cinzas?
Ó solitário, tu percorres o caminho daquele que cria: queres criar para ti um deus, a partir dos teus sete demônios!
Ó solitário, tu percorres o caminho de quem ama: amas a ti mesmo, e por isso te desprezas, como apenas amantes desprezam.
Criar quer aquele que ama, porque despreza! Que sabe do amor quem não teve de desprezar justamente aquilo que amava?
Vai para tua solidão com teu amor, irmão, e com o teu criar; e somente depois a justiça te seguirá claudicando.
Vai para tua solidão com minhas lágrimas, irmão. Amo aquele que quer criar além de si e assim perece. —
Assim falou Zaratustra.