Audioaula "Nietzsche - Do homem superior", em 23/11/17

 

Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 271 a 281.  


Do homem superior


1.

Quando fui pela primeira vez até os homens, cometi a tolice que cometem os eremitas, a grande tolice: postei-me na praça do mercado.

E, quando eu falava a todos, não falava com ninguém. À noite, equilibristas e cadáveres eram meus companheiros; e eu mesmo era quase um cadáver.

Mas com a nova manhã me chegou uma nova verdade: aprendi a falar “Que me interessam praça, plebe, barulho de plebe e longas orelhas de plebe?”.

Ó homens superiores, aprendei isto de mim: ninguém, no mercado, acredita em homens superiores. E, se quiserdes lá discursar, muito bem! Mas a plebe pestaneja e diz: “Somos todos iguais”.

“Ó homens superiores”, — assim diz a plebe — “não há homens superiores, somos todos iguais, homem é homem, diante de Deus — todos somos iguais!”

Diante de Deus! — Mas agora morreu esse deus. E diante da plebe não queremos ser iguais. Ó homens superiores, ide embora do mercado!


2.

Diante de Deus! — Mas agora morreu esse deus! Ó homens superiores, esse deus era vosso maior perigo.

Apenas depois que ele foi para o túmulo vós ressuscitastes. Somente agora vem o grande meio-dia, somente agora o homem superior torna-se — senhor!

Compreendestes essa palavra, ó irmãos? Estais assustados: sentem vertigens vossos corações? Abre-se para vós o abismo? Ladra para vós o cão do inferno?

Muito bem! Adiante, homens superiores! Somente agora vêm as dores do parto à montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos — que o super-homem viva.


3.

Os mais preocupados perguntam hoje: “Como conservar o homem?”. Mas Zaratustra é o primeiro e único a perguntar: “Como superar o homem?”.

O super-homem me está no coração, ele é o primeiro e único para mim — e não o homem: não o próximo, não o mais pobre, não o mais sofredor, não o melhor —

Ó irmãos, o que posso amar no homem é o fato de ser uma passagem e um declínio. Também em vós há muita coisa que me faz amar e esperar.

Desprezastes, ó homens superiores, e isso me faz ter esperança. Pois os grandes desprezadores são os grandes veneradores.

Desesperastes, e nisso há muito a reverenciar. Pois não aprendestes a vos entregar, não aprendestes as pequenas prudências. —

Pois agora as pessoas pequenas se tornaram senhores: pregam a modéstia, a entrega, a prudência, a diligência, a consideração e a longa lista de “etc.” das pequenas virtudes.

O que é de natureza feminina, o que vem do que é servil e, especialmente, a mixórdia plebeia: isso quer agora se tornar senhor de todo o destino humano — oh, nojo, nojo, nojo!

Isso pergunta, pergunta e não se cansa: “Como se conserva o homem, da maneira melhor, mais duradoura, mais agradável?”. Com isso — são os senhores do agora.

Superai esses senhores do agora, ó irmãos, — essas pessoas pequenas: elas são o maior perigo para o super-homem!

Superai, ó homens superiores, as pequenas virtudes, as pequenas prudências, as considerações de grãos de areia, o rebuliço de formigas, o deplorável bem-estar, a “felicidade da maioria” —!

E antes desesperai do que vos entregai. E, em verdade, eu vos amo porque não sabeis viver agora, ó homens superiores! Pois assim viveis — da melhor maneira!


4.

Tendes coragem, ó irmãos? Sois intrépidos? Não coragem diante de testemunhas, mas coragem de eremita e de águia, que nem mesmo um deus presencia mais?

Almas frias, mulas, cegos e bêbados não são intrépidos para mim. Coragem tem aquele que conhece o medo mas vence o medo, que vê o abismo, mas com orgulho.

Quem vê o abismo, mas com olhos de águia, quem com garras de águia agarra o abismo: esse é valente.


5.

“O homem é mau” — assim me falaram, como consolo, os homens mais sábios. Ah, se isso ainda fosse verdadeiro hoje! Pois o mal é a melhor força do homem.

“O homem tem de se tornar melhor e pior” — assim ensino eu. O pior é necessário para o melhor do super-homem.

Para aquele pregador da gente pequena pode ter sido bom que sofresse e carregasse o pecado do homem. Eu, porém, alegro-me do grande pecado como de meu grande consolo. —

Mas isso não é dito para as orelhas compridas. E não é toda palavra que convém a toda boca. São coisas delicadas e distantes: cascos de ovelhas não devem tocá-las!


6.

Ó homens superiores, julgais que estou aqui para reparar o que fizestes mal?

Ou que quero preparar leitos mais cômodos para vós que sofreis? Ou mostrar veredas novas e mais fáceis a vós, instáveis, perdidos e extraviados na montanha?

Não! Não! Três vezes não! Cada vez mais e melhores homens de vossa espécie deverão perecer, — pois as coisas deverão ser cada vez mais duras e difíceis para vós. Somente assim —

— somente assim cresce o homem até às alturas em que o raio o atinge e despedaça: alto o bastante para o raio!

Meu pensamento e meu anseio vão para poucas, demoradas e distantes coisas: que me importaria vossa pequena, breve e copiosa miséria?

Não sofreis ainda o bastante para mim! Pois sofreis por vós, não sofrestes ainda pelo homem. Mentiríeis, se dissésseis o contrário! Nenhum de vós sofre do que eu sofri. — —


7.

Não me basta que o raio já não cause dano. Eu não quero desviá-lo: ele deve aprender a — trabalhar para mim. —

Há muito tempo minha sabedoria se adensa como uma nuvem, tornando-se mais quieta e mais escura. Assim faz toda sabedoria que um dia parirá raios. —

Para esses homens de hoje não quero ser luz, ser chamado de luz. Esses — eu quero cegar: raio de minha verdade, vaza-lhes os olhos!


8.

Nada queirais acima de vossa capacidade: há uma maligna falsidade naqueles que querem acima de sua capacidade.

Em especial quando querem grandes coisas! Pois eles geram desconfiança das grandes coisas, esses finos falsários e atores: —

— até que terminam por serem falsos perante si mesmos, de olhar oblíquo, caiada madeira carcomida, encoberta por palavras fortes, por virtudes de fachada, por cintilantes obras falsas.

Tende cuidado, ó homens superiores! Nada me parece hoje mais raro e mais precioso do que retidão.

Este Hoje não pertence à plebe? Mas a plebe não sabe o que é grande, o que é pequeno, o que é reto e honesto: é inocentemente torta, sempre mente.


9.

Tende uma boa desconfiança hoje, ó homens superiores, ó corajosos, de coração aberto! E mantende secretas as vossas razões! Este Hoje é da plebe.

Aquilo que um dia a plebe aprendeu a acreditar sem razões, quem poderia derrubá-lo com razões?

E no mercado se convence com gestos. Mas razões tornam a plebe desconfiada.

E, se a verdade alcançou ali a vitória alguma vez, perguntai com boa desconfiança: “Que forte erro lutou em favor dela?”.

Guardai-vos também dos eruditos! Esses vos odeiam: pois são infecundos! Têm olhos frios e ressequidos, diante dos quais todo pássaro jaz sem penas.

Eles se gabam de não mentir: mas a incapacidade de mentir está muito longe de ser amor à verdade. Guardai-vos!

Ausência de febre está muito longe de ser conhecimento! Não creio nos espíritos esfriados. Quem não é capaz de mentir não sabe o que é a verdade.


10.

Se quereis subir alto, usai vossas pernas! Não vos deixeis carregar para cima, não vos senteis em costas e cabeças alheias!

Mas subiste a cavalo? Agora cavalgas veloz para a tua meta? Muito bem, meu amigo! Mas teu pé aleijado também está montado!

Quando chegares a tua meta, quando saltares do teu cavalo: precisamente em tua altura, ó homem superior — então tropeçarás!


11.

Ó criadores, ó homens superiores! Apenas para o bem do próprio filho fica-se grávido.

Não vos deixeis persuadir, induzir! Pois quem é vosso próximo? E, mesmo se agis “para o próximo” — não crieis para ele!

Desaprendei esse “para”, ó criadores: precisamente vossa virtude pede que não façais coisa nenhuma “para”, “por” e “porque”. Deveis fechar os ouvidos a essas palavrinhas falsas.

Esse “para o próximo” é virtude somente das pessoas pequenas: ali se fala “todos iguais” e “uma mão lava a outra”: — elas não têm o direito nem a força para o vosso egoísmo!

Em vosso egoísmo, ó criadores, está a prudência e providência da mulher grávida! Aquilo que nenhum olho viu, o fruto: esse é protegido, preservado e nutrido por vosso amor.

Onde se acha vosso amor, em vosso filho, ali também está vossa virtude! Vossa obra, vossa vontade é vosso “próximo”: não vos deixeis persuadir com falsos valores!


12.

Ó criadores, ó homens superiores! Quem tem que dar à luz está doente; mas quem veio à luz está impuro.

Perguntai às mulheres: não se dá à luz porque dá prazer. A dor faz as galinhas e os poetas cacarejarem.

Ó criadores, em vós há muito de impuro. Isso porque tivestes que ser mães.

Um novo filho: oh, quanta sujeira nova também veio ao mundo! Ficai de lado! E quem nasceu deve limpar sua alma!


13.

Não sejais virtuosos acima de vossas forças! E nada queirais de vós que não seja verossímil!

Segui os rastros que a virtude de vossos pais já seguiu! Como quereis subir alto, se a vontade de vossos pais não subir convosco?

Mas quem desejar ser o primeiro, que cuide para não se tornar o último! E ali onde se acham os vícios de vossos pais não deveis querer representar santos!

Aquele cujos pais gostavam de mulheres, vinhos fortes e porcos selvagens: como seria se quisesse a castidade para si?

Seria uma tolice! Em verdade, parece-me muito, para alguém assim, ser marido de uma, duas ou três mulheres.

E, se ele fundasse monastérios e inscrevesse acima da porta: “O caminho para a santidade”, — eu diria: para quê? é uma nova tolice!

Ele fundou para si uma casa de correção e de refúgio: que lhe faça bem! Mas não creio nisso.

Na solidão cresce aquilo que para lá se leva consigo, também o animal interior. Por isso ela é desaconselhável para muitos.

Já houve coisa mais imunda na terra do que os santos do deserto? Em torno deles não apenas o diabo estava solto, mas também o porco.


14.

Tímidos, envergonhados, canhestros, semelhantes a um tigre cujo bote malogrou: assim, ó homens superiores, eu vos vi muitas vezes, esgueirando-vos para o lado. Um lance vos malogrou.

Mas, ó lançadores de dados, que importa isso? Não aprendestes a jogar e zombar como se deve jogar e zombar! Não estamos sempre sentados a uma grande mesa onde se joga e se zomba?

E, se algo de grande vos malogrou, vós mesmos — malograstes por isso? E, se vós mesmos malograstes, malogrou por isso — o homem? Mas, se malogrou o homem: muito bem! Adiante!


15.

Quanto mais elevada sua espécie, tanto mais raramente logra uma coisa. Vós, homens superiores aqui presentes, não sois todos — malogrados?

Não desanimeis! Que importa? Quanta coisa é ainda possível! Aprendei a rir de vós mesmos, tal como se deve rir!

Não surpreende que malograstes e meio que lograstes, ó meio-destroçados! Dentro de vós não empurra e abre caminho o — futuro do homem?

O que no homem é mais distante, mais profundo, alto como as estrelas, sua tremenda força: tudo isso não ferve e se embate em vossa panela?

Não surpreende que muitas panelas se despedacem! Aprendei a rir de vós, tal como se deve rir! Ó homens superiores, quanta coisa é ainda possível!

E, em verdade, quanta coisa já vingou! Como é rica essa terra em pequenas coisas boas e perfeitas, naquilo que vingou!

Cercai-vos de pequenas coisas boas e perfeitas, ó homens superiores! Sua áurea madureza cicatriza o coração. O que é perfeito ensina a esperança.


16.

Qual foi, até agora, o maior pecado aqui na terra? Não foi a palavra daquele que disse: “Ai daqueles que agora riem!”?

Ele próprio não achou na terra motivos para rir? Então procurou mal. Até mesmo uma criança encontra motivos.

Aquele — não amou o suficiente: senão teria amado também a nós, os risonhos! Mas ele nos odiou e escarneceu de nós, prometeu-nos muito choro e ranger de dentes.

Deve-se amaldiçoar quando não se ama? Isso — parece-me de mau gosto. Mas assim ele fez, esse homem incondicional. Ele veio da plebe.

E ele próprio não amou bastante: de outro modo, não se zangaria tanto por não o amarem. O que todo grande amor quer não é amor: — quer mais.

Evitai os incondicionais como esse! É uma espécie doente e pobre, uma espécie plebeia: eles veem a vida com maus olhos, lançam o mau-olhado a essa terra.

Evitai os incondicionais como esse! Eles têm pés pesados e corações carregados: — eles não sabem dançar. Como poderia a terra lhes ser leve?


17.

É de maneira torta que todas as coisas boas se aproximam de sua meta. Tal como gatos, arqueiam o dorso e ronronam intimamente ante a felicidade iminente — todas as coisas boas riem.

O passo revela se alguém já anda em sua trilha: então olhai-me a andar! Mas quem se aproxima de sua meta, dança.

E, em verdade, não me converti em estátua nem estou aqui plantado, embotado, petrificado, como uma coluna; eu amo o andar veloz.

E, embora na terra também haja pântano e espessa aflição: quem tem pés ligeiros passa inclusive por sobre a lama, e dança como em gelo polido.

Erguei vossos corações bem alto, meus irmãos! Mais alto! E não esqueçais as pernas! Erguei também vossas pernas, ó bons dançarinos, e melhor ainda: ficai de cabeça para baixo!


18.

Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo a pus em mim, eu mesmo declarei santa a minha risada. Nenhum outro encontrei, hoje, forte o bastante para isso.

Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto para o voo, fazendo sinal a todas as aves, pronto e disposto, venturosamente ligeiro: —

Zaratustra, o adivinho risonho, nada impaciente, nada intransigente, alguém que ama saltos e pulos para o lado; eu próprio me pus essa coroa!


19.

Erguei vossos corações bem alto, meus irmãos! Mais alto! E não esqueçais as pernas! Erguei também vossas pernas, ó bons dançarinos, e melhor ainda: ficai de cabeça para baixo!

Também na felicidade há animais lerdos, há pés pesados de nascença. Estranhamente se esforçam, como um elefante que se empenha em ficar de cabeça para baixo.

Mas ainda é melhor ser tolo de felicidade que tolo de infelicidade, melhor dançar toscamente que andar coxeando. Aprendei, então, da minha sabedoria: mesmo a pior coisa tem dois bons reversos, —

— mesmo a pior coisa tem boas pernas para dançar: aprendei então vós mesmos, ó homens superiores, a vos manter em vossas pernas certas!

Desaprendei, então, o cultivo da aflição e toda tristeza plebeia! Oh, como hoje me parecem tristes até mesmo os bufões da plebe! Mas esse Hoje é da plebe.


20.

Fazei como o vento quando sai de suas cavernas na montanha: conforme sua própria música deseja dançar, e os mares tremem e pulam sob seus passos.

Aquele que dá asas aos jumentos, que ordenha leoas, louvado seja esse bom espírito indomável, que chega como um tufão a todo o Hoje e a toda a plebe, —

— que é inimigo das cabeças cavilosas e espinhosas e das folhas murchas e ervas daninhas: louvado seja esse bom, selvagem e livre espírito de tempestade, que dança sobre pântanos e aflições como em prados!

Aquele que odeia os doentes cães plebeus e toda a corja sombria e malograda: louvado seja esse espírito de todos os espíritos livres, a risonha tempestade que lança poeira nos olhos de todos os biliosos e ulcerosos!

Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a dançar como se deve dançar — indo além de vós mesmos! Que importa se malograstes?

Quanta coisa é ainda possível! Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos corações, ó bons dançarinos! Mais alto! E não esqueçais o bom riso tampouco!

Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: a vós, irmãos, arremesso esta coroa! Declarei santo o riso; ó homens superiores, aprendei a — rir!