Audioaula "Nietzsche - Dos desprezadores do corpo", em 10/02/17

 

Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 34 a 36. 


Dos desprezadores do corpo


Aos desprezadores do corpo desejo falar. Eles não devem aprender e ensinar diferentemente, mas apenas dizer adeus a seu próprio corpo — e, assim, emudecer.

“Corpo sou eu e alma” — assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?

Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo.

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão.

“Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer — é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu.

O que o sentido sente, o que o espírito conhece, jamais tem fim em si mesmo. Mas sentido e espírito querem te convencer de que são o fim de todas as coisas: tão vaidosos são eles.

Instrumentos e brinquedos são sentidos e espírito: por trás deles está o Si-mesmo. O Si-mesmo também procura com os olhos do sentido, também escuta com os ouvidos do espírito.

O Si-mesmo sempre escuta e procura: compara, submete, conquista, destrói. Domina e é também o dominador do Eu.

Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido — ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele.

Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe por que teu corpo necessita justamente de tua melhor sabedoria?

Teu Si-mesmo ri de teu Eu e de seus saltos orgulhosos. “Que são para mim esses saltos e voos do pensamento?”, diz para si. “Um rodeio até minha meta. Eu sou a andadeira do Eu e o soprador dos seus conceitos.”

O Si-mesmo diz para o Eu: “Sente dor aqui!”. E esse sofre e reflete em como não mais sofrer — e justamente para isso deve pensar.

O Si-mesmo diz para o Eu: “Sente prazer aqui!”. E esse se alegra e reflete em como se alegrar mais — e justamente para isso deve pensar.

Aos desprezadores do corpo tenho algo a dizer. O fato de desprezarem constitui o seu prezar. O que foi que criou o prezar e o desprezar, o valor e a vontade?

O Si-mesmo criador criou para si o prezar e o desprezar, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou para si o espírito, como uma mão de sua vontade.

Ainda em vossa tolice e desprezo, vós, desprezadores do corpo, atendeis ao vosso Si-mesmo. Eu vos digo: vosso próprio Si-mesmo quer morrer e se afasta da vida.

Já não é capaz de fazer o que mais deseja: — criar para além de si. Isso é o que mais deseja, isso é todo o seu fervor.

Mas ficou tarde demais para isso: — então vosso Si-mesmo quer perecer, desprezadores do corpo!

Vosso Si-mesmo quer perecer, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Pois não mais sois capazes de criar para além de vós.

E por isso vos irritais agora com a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no oblíquo olhar do vosso desprezo.

Não seguirei vosso caminho, desprezadores do corpo! Não sois, para mim, pontes para o super-homem! —

Assim falou Zaratustra.