Audioaula "Nietzsche - A hora mais quieta", em 21/09/17
Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 138 a 141.
A hora mais quieta
Que me aconteceu, meus amigos? Vedes-me perturbado, repelido, obediente a contragosto, disposto a ir — ah, ir para longe de vós!
Sim, ainda uma vez deve Zaratustra retornar à sua solidão: mas dessa vez o urso volta sem ânimo para sua caverna!
Que me aconteceu? Quem ordenou isso? — Ah, minha irada senhora quer assim, ela falou comigo; já vos disse alguma vez o seu nome?
Ontem à noite falou comigo minha hora mais quieta: eis o nome de minha terrível senhora.
E assim aconteceu — pois devo contar-vos tudo, para que vosso coração não se endureça com aquele que subitamente parte!
Conheceis o pavor daquele que adormece? —
Até os dedos dos pés ele se apavora de o chão lhe fugir e o sonho começar.
Isso vos digo como imagem. Ontem, na hora mais quieta, fugiu-me o chão: o sonho começou.
O ponteiro avançava, o relógio de minha vida tomava fôlego — jamais ouvi tal quietude ao meu redor: de maneira que meu coração se apavorou.
Então me falaram sem voz: “Tu sabes, Zaratustra?” —
E eu gritei de pavor ante esse murmúrio, e o sangue me fugiu do rosto: mas permaneci calado.
Então, de novo me falaram sem voz: “Tu sabes, Zaratustra, mas não falas!” —
E eu afinal respondi, como alguém que teima: “Sim, eu sei, mas não quero falar!”.
Então novamente me falaram sem voz: “Tu não queres, Zaratustra? Isso é verdade? Não te escondas em tua teimosia!” —
Eu chorei e tremi como uma criança, e falei: “Ah, eu bem queria, mas como posso? Dispensa-me disso! Está acima de minhas forças!”.
Então novamente me falaram sem voz: “Que importas tu, Zaratustra? Fala tuas palavras e faz-te em pedaços!” —
E eu respondi: “Ah, são minhas palavras? Quem sou eu? Espero alguém mais digno; não mereço sequer despedaçar-me nele”.
Então novamente me falaram sem voz: “Que importas tu? Ainda não és humilde o bastante para mim. A humildade tem o couro mais duro”. —
E eu respondi: “O que já não suportou o couro de minha humildade! Vivo ao pé de minhas alturas: qual a altura de meus cumes? Ninguém me disse ainda. Mas conheço bem os meus vales”.
Então novamente me falaram sem voz: “Ó Zaratustra, quem tem montanhas a mover, move também vales e baixadas”. —
E eu respondi: “Minhas palavras não removeram ainda nenhuma montanha, e o que falei não alcançou os homens. Eu bem fui para os homens, mas ainda não cheguei até eles”.
Então novamente me falaram sem voz: “Que sabes tu disso? O orvalho cai sobre a relva quando a noite mais silencia”. —
E eu respondi: “Eles zombaram de mim, quando encontrei meu próprio caminho e o segui; e, em verdade, tremeram meus pés então.
E assim me falaram eles: desaprendeste o caminho, e agora desaprendes também o andar!”
Então novamente me falaram sem voz: “Que importa a zombaria deles? És alguém que desaprendeu a obediência: agora deves ordenar!
Não sabes de quem mais necessitam todos? Daquele que ordena grandes coisas.
Realizar grandes coisas é difícil: ordenar grandes coisas é o mais difícil, porém.
Eis o que é mais imperdoável em ti: tens o poder, e não queres dominar.” —
E eu respondi: “Falta-me a voz do leão para tudo ordenar”.
Então, novamente me falaram como num sussurro: “As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade. Pensamentos que vêm com pés de pombas dirigem o mundo.
Ó Zaratustra, deves andar como uma sombra daquilo que tem de vir: assim ordenarás e, ordenando, andarás à frente.” —
E eu respondi: “Envergonho-me”.
Então novamente me falaram sem voz: “É preciso que te tornes criança e não sintas vergonha.
Ainda tens o orgulho da juventude, tarde te tornaste jovem: mas quem quer se tornar criança, ainda tem de superar sua juventude.” —
E eu refleti longamente e tremi. Mas, afinal, disse o que havia dito primeiramente: “Não quero”.
Então houve uma risada ao meu redor. Ah, como essa risada me rasgou as entranhas e dilacerou o coração!
E pela última vez me falaram: “Ó Zaratustra, teus frutos estão maduros, mas não estás maduro para teus frutos!
Assim, tens de voltar para a solidão: pois deves ainda ficar tenro.” —
E novamente algo riu, e fugiu; então tudo se pôs quieto ao meu redor, como que num duplo silêncio. Mas eu estava caído no chão, e o suor me escorria pelos membros.
— Agora ouvistes tudo, e por que devo retornar à minha solidão. Nada vos ocultei, meus amigos.
Mas também isto me ouvistes dizer: quem, de todos os homens, é ainda o mais calado — e quer sê-lo!
Ah, meus amigos! Eu ainda teria algo a vos dizer, ainda teria algo a vos dar! Por que não o dou? Então sou avarento? —
Após dizer essas palavras, Zaratustra foi tomado pela violência da dor e a iminente despedida de seus amigos, de modo que chorou alto; e ninguém pôde consolá-lo. À noite, porém, ele foi embora sozinho, deixando seus amigos.