Audioaula "Nietzsche - O maior dos pesos (sobre o eterno retorno)", em 09/11/17
O maior dos pesos. – E se um dia, ou uma noite, um demônio aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?
A gaia ciência, Companhia das letras, 2001, tradução de Paulo César de Souza, p. 230.
Um fragmento póstumo de 1881 diz: “Mesmo admitindo que a repetição cíclica seja apenas uma verossimilhança ou possibilidade, o simples pensamento de uma possibilidade pode nos emocionar e nos transformar, tanto quanto sentimentos ou esperanças. Que se pense na ação que exerceu a simples possibilidade da eterna condenação”. Outro póstumo da mesma época diz: “Quem não acredita em um processo circular do todo tem de acreditar no Deus voluntário – assim minha consideração se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que houve até agora”. [...] Concordo, portanto, com Clement Rosset quando, ao comentar o §341 de A gaia ciência, assinala que o eterno retorno é uma simples ideia, uma suposição, uma hipótese, uma ficção, uma questão que diz respeito não à verdade das coisas e sim à reação afetiva do homem, em relação a qual ele se constitui uma prova.
Roberto Machado, Zaratustra: tragédia nietzschiana, Jorge Zahar Editor, 3ª edição, 2001, p. 149 e 151.
Qual pode ser a nossa doutrina? — Que ninguém dá ao ser humano suas características, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele próprio. [...] Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será. Ele não é consequência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade próprias, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser humano” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” — é absurdo querer empurrar o seu ser para uma finalidade qualquer. Nós é que inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade não se encontra finalidade... Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo — não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não existe nada fora do todo! [...] O conceito de “Deus” foi, até agora, a maior objeção à existência... Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo. —
Crepúsculo dos ídolos, Companhia das letras, 2006, tradução de Paulo César de Souza, p. 46.
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...
Ecce homo, Companhia das letras, 2003, tradução de Paulo César de Souza, p. 51.
Meu mundo se tornou perfeito nesse instante, meia-noite é também meio-dia, —
A dor também é um prazer, a maldição também é uma bênção, a noite também é um sol — ide embora, ou aprendereis: um sábio também é um tolo.
Dissestes alguma vez Sim a um só prazer? Oh, meus amigos, então dissestes também Sim a todo sofrimento. Todas as coisas são encadeadas, emaranhadas, enamoradas, —
— e, se um dia quisestes duas vezes o que houve uma vez, se algum dia dissestes ‘tu me agradas, felicidade! Vem, instante!’, então quisestes que tudo voltasse!
— Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado, oh, assim amais vós o mundo, —
— vós, eternos, o amais eternamente e a todo tempo: e também à dor dizeis: Passa, mas retorna! Pois todo prazer quer — eternidade!
Assim falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução de Paulo César de Souza, p. 307.
E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, [...] abençoando a si próprio como Aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu “para além de bem e mal”, sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –, quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para nós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!
Coleção Os pensadores: Nietzsche, Nova Cultural, 1999, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, p. 449.
Ó minha alma, eu te ensinei o desprezar que não vem como verme roedor, o grande, amoroso desprezar, que mais ama onde mais despreza.
Ó minha alma, eu tirei de ti todo obedecer, dobrar de joelhos e dizer “senhor”; dei-te eu próprio o nome “afastamento da necessidade”.
Ó minha alma, agora te dei tudo, também a última coisa que tinha, e todas as minhas mãos se esvaziaram por ti: — que eu te mandasse cantar, vê, foi essa minha última coisa!
Que eu te mandasse cantar, diz, diz então: quem de nós dois deve agora — agradecer? Melhor ainda: canta, ó minha alma, canta! E deixa-me agradecer!
Assim falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução de Paulo César de Souza, p. 212.