Audioaula "Nietzsche - O regresso", em 19/10/17

 

Assim Falou Zaratustra, Companhia das letras, 2011, tradução Paulo César de Souza, p. 174 a 178. 


O regresso


Ó solidão! Solidão, pátria minha! Por tempo demais vivi selvagemente, em selvagens terras alheias, para não regressar a ti sem lágrimas!

Agora apenas me ameaça com o dedo, como fazem as mães, agora sorri para mim, como sorriem as mães, agora apenas fala: “E quem foi aquele que um dia, como um vendaval, escapou tempestuosamente de mim? —

— que partindo exclamou: por tempo demais fiquei junto à solidão, então desaprendi de calar! Isso —aprendeste agora?

Ó Zaratustra, sei de tudo; e também que no meio de muitos homens estavas mais abandonado, único que és, do que jamais estiveste comigo!

Uma coisa é o abandono, outra é a solidão. Isso — aprendeste agora! E que sempre serás, entre os homens, selvagem e alheio:

— selvagem e alheio ainda quando te amem: pois antes de tudo eles querem ser poupados!

Mas aqui estás contigo e em casa; aqui podes falar tudo e desabafar todas as razões; nada, aqui, se envergonha de sentimentos escondidos, empedernidos.

Aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te lisonjeiam: pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até cada verdade.

De forma direita e direta podes falar aqui a todas as coisas: e, em verdade, aos seus ouvidos soa-lhes como um louvor que alguém fale com todas as coisas sem rodeios!

Diferente, todavia, é ser abandonado. Pois ainda te lembras, ó Zaratustra? Quando o teu pássaro gritou acima de ti, quando estavas na floresta, sem saber para onde ir, indeciso, próximo de um cadáver: —

— quando falaste: que os meus animais me conduzam! Vi mais perigo entre os homens do que entre os animais: — Isso era abandono!

E ainda te lembras, ó Zaratustra? Quando estavas em tua ilha, uma fonte de vinho entre cântaros vazios, dando e dividindo, regalando e repartindo entre os sedentos:

— até que finalmente eras o único sedento entre os bêbados e à noite lamentavas: ‘Não é mais venturoso receber do que dar? E ainda mais venturoso roubar do que receber?’ — Isso era abandono!

E ainda te lembras, ó Zaratustra? Quando chegou tua hora mais silenciosa e te arrastou para longe de ti mesmo, quando falou num malvado sussurro: ‘Fala e te despedaça!’ —

— quando fez que te arrependesses de todo o teu esperar e silenciar e que esmorecesse tua humilde coragem: isso era abandono!” —

Ó solidão! Solidão, pátria minha! Quão terna e bem-aventurada me fala a tua voz!

Nós não interrogamos um ao outro, não reclamamos um ao outro, passamos, um ao outro aberto, por portas abertas.

Pois contigo é tudo aberto e claro; e mesmo as horas correm aqui com pés mais leves. De fato, no escuro o tempo é mais pesado que na luz.

Aqui se abrem para mim as palavras e arcas de palavras de todo o ser: todo o ser quer vir a ser palavra, todo vir-a-ser quer comigo aprender a falar.

Lá embaixo, porém — lá toda fala é em vão! A melhor sabedoria, lá, é esquecer e passar ao largo: isso — aprendi eu agora!

Quem quisesse tudo compreender nos homens, precisaria tudo acometer. Mas para isso tenho mãos demasiado limpas.

Nem seu hálito me agrada inalar; ah, como vivi tanto tempo em meio a seu ruído e mau hálito?

Oh, venturoso silêncio ao meu redor! Oh, puros odores ao meu redor! Oh, como este silêncio extrai ar puro do peito profundo! Oh, como escuta este venturoso silêncio!

Mas lá embaixo — ali tudo fala e nada é ouvido. Alguém pode anunciar sua verdade com sinos: os merceeiros do mercado lhe cobrirão o som com o tilintar dos níqueis! 

Entre eles todos falam, e ninguém mais entende. Tudo vai por água abaixo, nada mais fica em poços profundos.

Entre eles todos falam, e nada mais vinga e chega ao fim. Todos cacarejam, mas quem fica sentado em silêncio no ninho, para chocar os ovos?

Entre eles todos falam, e tudo é estropiado com palavras. E aquilo que ontem ainda era duro demais para o tempo e seus dentes: hoje pende, roído e rasgado, das bocas dos homens de hoje.

Entre eles todos falam, tudo é revelado. E o que um dia era segredo e reserva de almas profundas, hoje pertence aos trombeteiros das ruas e outras borboletas.

Ó ser humano, singular criatura! Ruído em becos escuros! Agora te achas novamente detrás de mim: — meu maior perigo se acha detrás de mim!

Poupar e compadecer sempre foi meu maior perigo — e todo ser humano quer ser poupado e compadecido.

Com verdades contidas, com mãos de tolo e coração tolamente enamorado, e pródigo nas pequenas mentiras da compaixão: — assim sempre vivi entre os homens.

Disfarçado me sentava entre eles, disposto a me desconhecer para melhor suportar a eles, e de bom grado me dizendo: “Tolo, não conheces os homens!”.

Desaprende-se a conhecer os homens ao viver entre eles: há “fachada” em demasia em todos os homens — que têm a fazer, ali, olhos que veem longe, que desejam o longe?

E, quando me desconheciam: eu, tolo, poupava-os mais do que a mim mesmo por isso — habituado à dureza comigo e muitas vezes vingando-me em mim mesmo por poupá-los.

Picado por moscas venenosas e furado, como uma pedra, por muitas gotas de maldade, assim me sentava entre eles, ainda dizendo a mim mesmo: “Tudo pequeno é inocente de sua pequenez!”.

Especialmente os que se chamam “os bons” percebi como as moscas mais venenosas: eles picam com toda a inocência, mentem com toda a inocência; como conseguiriam, em relação a mim — ser justos?

Àquele que vive entre os bons a compaixão ensina a mentir. A compaixão torna bafiento o ar para todas as almas livres. Pois insondável é a estupidez dos bons.

Ocultar a mim mesmo e a minha riqueza — isso aprendi lá embaixo: pois todos me pareceram ainda pobres de espírito. Essa foi a mentira de minha compaixão, o fato de que em cada um eu sabia,

— de que em cada um via e cheirava o que lhe era espírito suficiente e o que já lhe era espírito demais!

Seus rígidos sábios: eu os chamei sábios, não rígidos — assim aprendi a engolir palavras. Seus coveiros: eu os chamei pesquisadores e examinadores — assim aprendi a trocar palavras.

Os coveiros cavam doenças para si. Sob velhos escombros descansam vapores ruins. Não se deve revolver o lodaçal. Deve-se viver nas montanhas.

Com narinas venturosas respiro novamente a liberdade dos montes! Finalmente redimido se acha meu nariz do odor de seres humanos!

Por agudos ventos titilada, como que por espumantes vinhos, minha alma espirra — espirra e brinda a si mesma: Saúde!

Assim falou Zaratustra.