Audioaula "Spinoza - Mente e corpo", de 23/03/18
Ética, Autêntica Editora, 1ª edição, 2007, tradução de Tomaz Tadeu.
Prefácio (parte 2). Passo agora a explicar aquelas coisas que deveram seguir-se necessariamente da essência de Deus, ou seja, da essência do ente eterno e infinito. Embora tenhamos demonstrado, na prop. 16 da P. 1, que dela devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras, não explicarei, na verdade, todas, mas apenas aquelas que possam nos conduzir, como que pela mão, ao conhecimento da mente humana e de sua beatitude suprema.
Definição 1 (parte 2). Por corpo compreendo um modo que exprime, de maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa extensa.
Definição 3 (parte 2). Por ideia compreendo um conceito da mente, que a mente forma porque é uma coisa pensante.
Demonstração da prop. 1 (parte 2). Os pensamentos singulares, ou seja, este ou aquele pensamento, são modos que exprimem a natureza de Deus de uma maneira definida e determinada.
Proposição 12 (parte 2). Tudo aquilo que acontece no objeto da ideia que constitui a mente humana deve ser percebido pela mente humana, ou seja, a ideia daquilo que acontece nesse objeto existirá necessariamente na mente; isto é, se o objeto da ideia que constitui a mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela mente.
Proposição 13 (parte 2). O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.
Escólio. Ninguém, entretanto, poderá compreender essa união adequadamente, ou seja, distintamente, se não conhecer, antes, adequadamente, a natureza de nosso corpo. Com efeito, tudo o que mostramos até agora é absolutamente geral e se aplica tanto aos homens quanto aos outros indivíduos, os quais, ainda que em graus variados, são, entretanto, todos, animados. Pois, de qualquer coisa existe necessariamente a ideia em Deus, ideia da qual Deus é a causa, da mesma maneira que é causa da ideia do corpo humano. Portanto, tudo quanto dissemos da ideia do corpo humano deve necessariamente dizer-se da ideia de qualquer coisa. Entretanto, tampouco podemos negar que as ideias, tais como os próprios objetos, diferem entre si, e que uma ideia é superior a outra e contém mais realidade do que outra, à medida que o objeto de uma é superior ao objeto da outra e contém mais realidade do que o objeto da outra. E, por isso, para determinar em quê a mente humana difere das outras e em quê lhes é superior, é necessário que conheçamos, como dissemos, a natureza de seu objeto, isto é, a natureza do corpo humano. […] Digo, porém, que, em geral, quanto mais um corpo é capaz, em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, ou de padecer simultaneamente de um número maior de coisas, tanto mais sua mente é capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas. E quanto mais as ações de um corpo dependem apenas dele próprio, e quanto menos outros corpos cooperam com ele no agir, tanto mais sua mente é capaz de compreender distintamente.
Axioma 1 da prop. 13 (este e os demais abaixo, da parte 2). Todos os corpos estão ou em movimento ou em repouso.
Axioma 2 da prop. 13. Todo corpo se move ora mais lentamente, ora mais velozmente.
Lema 1. Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância.
Lema 3. Um corpo, em movimento ou em repouso, deve ter sido determinado ao movimento ou ao repouso por um outro, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao repouso por um outro, e este último, novamente, por um outro e, assim, sucessivamente, até o infinito.
Axioma 2 do Lema 3. Isso quanto aos corpos mais simples, aqueles que se distinguem entre si apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão. Passemos, agora, aos corpos compostos.
Definição. Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos.
Postulado 1. O corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto.
Postulado 3. Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas maneiras.
Postulado 6. O corpo humano pode mover e arranjar os corpos exteriores de muitas maneiras.
Proposição 14 (parte 2). A mente humana é capaz de perceber muitas coisas, e é tanto mais capaz quanto maior for o número de maneiras pelas quais seu corpo pode ser arranjado.
Demonstração. O corpo humano, com efeito (pelos postulados 3 e 6), é afetado, de muitas maneiras, pelos corpos exteriores, e está arranjado de modo tal que afeta os corpos exteriores de muitas maneiras. Ora, tudo o que acontece no corpo humano (pela prop. 12) deve ser percebido pela mente. Portanto, a mente humana é capaz de perceber muitas coisas e é tanto mais capaz quanto, etc.
Proposição 15 (parte 2). A ideia que constitui o ser formal da mente humana não é simples, mas composta de muitas ideias.
Demonstração. A ideia que constitui o ser formal da mente humana é a ideia do corpo (pela prop. 13), o qual (pelo post. 1) compõe-se de muitos indivíduos altamente compostos. Ora, existe, necessariamente (pelo corol. da prop. 8), em Deus, uma ideia de cada indivíduo que compõe o corpo. Logo (pela prop. 7), a ideia do corpo humano é composta dessas muitas ideias das partes de que é composto.
Proposição 16 (parte 2). A ideia de cada uma das maneiras pelas quais o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores deve envolver a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a natureza do corpo exterior.
Corolário 1. Disso se segue, em primeiro lugar, que a mente humana percebe, juntamente com a natureza de seu corpo, a natureza de muitos outros corpos.
Corolário 2. Segue-se, em segundo lugar, que as ideias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores, o que expliquei, com muitos exemplos, no apêndice da primeira parte.