Cartografia do desejo em Deleuze & Guattari - Aula 1

 

O investimento libidinal inconsciente de desejo


Sem dúvida, os interesses nos predispõem a tal ou qual investimento libidinal, mas eles não se confundem com este. E mais: o investimento libidinal inconsciente é que nos determina a buscar mais de um lado do que de outro, a fixar nossos objetivos numa certa via, persuadidos de que é aí que teremos todas as nossas oportunidades — já que para lá o amor nos impele. […] Certamente, o papel, o lugar, a parte que se tem numa sociedade, e que se herda em função das leis de reprodução social, impelem a libido a investir um certo socius enquanto corpo pleno, uma certa potência absurda de que participamos ou temos possibilidades de participar ao abrigo dos objetivos e dos interesses. Apesar disso, há um amor desinteressado pela máquina social, pela forma de potência e pelo grau de desenvolvimento por si mesmos. […] Vemos os mais desfavorecidos, os mais excluídos, investirem com paixão o sistema que os oprime, e onde acham sempre um interesse, pois é aí que o buscam e mensuram. O interesse vem sempre a seguir. A antiprodução difunde-se pelo sistema: a antiprodução será amada por si mesma, à maneira pela qual o desejo reprime a si próprio no grande conjunto capitalista. Reprimir o desejo, não só nos outros, mas também em si próprio, ser o tira dos outros e de si próprio, eis o que dá tesão, e isto não diz respeito à ideologia, mas à economia. […] Oh, certamente não é para si nem para seus filhos que o capitalista trabalha, mas para a imortalidade do sistema. Violência sem objetivo, alegria, pura alegria de se sentir uma engrenagem da máquina, atravessado pelos fluxos, cortado pelas esquizas. Colocar-se na posição em que se é assim atravessado, cortado, enrabado pelo socius, buscar o bom lugar onde, de acordo com os objetivos e os interesses que nos são consignados, sente-se passar algo que não tem interesse nem objetivo. Um tipo de arte pela arte na libido, um certo gosto pelo trabalho benfeito, cada um no seu lugar, o banqueiro, o tira, o soldado, o tecnocrata, o burocrata e, por que não, o operário, o sindicalista... O desejo embasbacado. (O anti-Édipo, p. 458 a 460, Editora 34, 1ª edição, 2010)


No conflito de gerações, é comum ouvir velhos censurarem jovens de maneira acentuadamente malévola, dizendo que estes fazem passar seus desejos (carro, crédito, empréstimo, relações moças-rapazes) antes do seu interesse (trabalho, poupança, bom casamento). Porém, naquilo que parece desejo bruto a outrem, há ainda complexos de desejo e de interesse, e uma mistura de formas precisamente reacionárias e vagamente revolucionárias tanto de um quanto do outro. A situação é totalmente emaranhada. Parece que a esquizoanálise pode dispor apenas de índices — os índices maquínicos — para desemaranhar os investimentos libidinais do campo social no nível dos grupos ou dos indivíduos. Ora, sob este aspecto, é a sexualidade que constitui os índices. (O anti-Édipo, p. 464 e 465, Editora 34, 1ª edição, 2010)


Em suma, nossos investimentos libidinais do campo social, reacionários ou revolucionários, são tão bem escondidos, tão inconscientes, tão recobertos pelos investimentos pré-conscientes que eles só aparecem em nossas escolhas sexuais amorosas. Um amor não é reacionário nem revolucionário, mas é o índice do caráter reacionário ou revolucionário dos investimentos sociais da libido. […] Certamente, não é a libido, como acreditava Freud, que deve dessexualizar-se e sublimar-se para investir a sociedade e seus fluxos, mas, ao contrário, é o amor, o desejo e seus fluxos que manifestam o caráter imediatamente social da libido não sublimada e dos seus investimentos sexuais. (O anti-Édipo, p. 468 e 469, Editora 34, 1ª edição, 2010)


Como energia sexual, a libido é diretamente investimento de massas, de grandes conjuntos e de campos orgânicos e sociais. [...] Na verdade a sexualidade está em toda parte: na maneira como um burocrata acaricia os seus dossiês, como um juiz distribui justiça, como um homem de negócios faz circular o dinheiro, como a burguesia enraba o proletariado etc. […] Hitler dava tesão nos fascistas. As bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos dão tesão em muita gente. Uma máquina revolucionária nada é enquanto não adquirir pelo menos tanta potência de corte e de fluxo quanto essas máquinas coercivas. (O anti-Édipo, p. 386 e 387, Editora 34, 1ª edição, 2010)