Deus ou a natureza em Spinoza - Aula 2
O asilo da ignorância: a causa final como ilusão humana.
Quem decidiu fazer alguma coisa e a concluiu, dirá que ela está perfeita, e não apenas ele, mas também qualquer um que soubesse o que o autor tinha em mente e qual era o objetivo de sua obra ou que acreditasse sabê-lo. Por exemplo, se alguém observa uma obra (que suponho estar ainda inconclusa) e sabe que o objetivo do seu autor é o de edificar uma casa, dirá que a casa é imperfeita e, contrariamente, dirá que é perfeita se perceber que a obra atingiu o fim que seu autor havia decidido atribuir-lhe. Mas se alguém observa uma obra que não se parece com nada que tenha visto e, além disso, não está ciente da ideia do artífice, não saberá, certamente, se a obra é perfeita ou imperfeita. Este parece ter sido o significado original desses vocábulos. Mas, desde que os homens começaram a formar ideias universais e a inventar modelos de casas, edifícios, torres, etc., e a dar preferência a certos modelos em detrimento de outros, o que resultou foi que cada um chamou de perfeito aquilo que via estar de acordo com a ideia universal que tinha formado das coisas do mesmo gênero, e chamou de imperfeito aquilo que via estar menos de acordo com o modelo que tinha concebido, ainda que, na opinião do artífice, a obra estivesse plenamente concluída. E não parece haver outra razão para chamar, vulgarmente, de perfeitas ou imperfeitas também as coisas da natureza, isto é, as que não são feitas pela mão humana. Pois os homens têm o hábito de formar ideias universais tanto das coisas naturais quanto das artificiais, ideias que tomam como modelos das coisas, e acreditam que a natureza (que pensam nada fazer senão em função de algum fim) observa essas ideias e as estabelece para si própria como modelos. Quando, pois, veem que na natureza ocorre algo que esteja menos de acordo com o que concebem como modelo das coisas desse gênero, acreditam que a própria natureza fracassou ou errou e que deixou essa coisa imperfeita. Vemos, assim, que, mais por preconceito do que por um verdadeiro conhecimento delas, os homens adquiriram o hábito de chamar de perfeitas ou de imperfeitas as coisas naturais. Com efeito, mostramos, no apêndice da primeira parte, que a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e infinito que chamamos Deus ou natureza age pela mesma necessidade pela qual existe. Mostramos, com efeito, que ele age pela mesma necessidade da natureza pela qual existe (prop. 16 da P. 1). Portanto, a razão ou a causa pela qual Deus ou a natureza age e aquela pela qual existe é uma só e a mesma. Logo, assim como não existe em função de qualquer fim, ele também não age dessa maneira. Em vez disso, assim como não tem qualquer fim em função do qual existir, tampouco tem qualquer princípio ou fim em função do qual agir. Quanto à causa que chamam final, não se trata senão do próprio apetite humano, enquanto considerado como princípio ou causa primeira de alguma coisa. Por exemplo, quando dizemos que a causa final desta ou daquela casa foi a habitação, certamente não devemos compreender, por isso, senão que um homem, por ter imaginado as vantagens da vida doméstica, teve o apetite de construir uma casa. É por isso que a habitação, enquanto considerada como uma causa final, nada mais é do que este apetite singular, que, na realidade, é uma causa eficiente, mas que é considerada como primeira, porque, em geral, os homens desconhecem as causas de seus apetites. Pois, como já disse muitas vezes, os homens estão, de fato, conscientes de suas ações e de seus apetites, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados a apetecer algo. Além disso, quanto ao que vulgarmente se diz, que a natureza, às vezes, fracassa ou erra, e que produz coisas imperfeitas, coloco na conta das ficções de que tratei no apêndice da P. 1. Portanto, a perfeição e a imperfeição são, na realidade, apenas modos do pensar, isto é, noções que temos o hábito de inventar, por compararmos entre si indivíduos da mesma espécie ou do mesmo gênero. Foi por esta razão que disse, anteriormente (def. 6 da P. 2), que por realidade e perfeição compreendia a mesma coisa. Pois temos o hábito de reduzir todos os indivíduos da natureza a um único gênero, que dizemos ser o gênero supremo, ou seja, à noção de ente, que pertence, sem exceção, a todos os indivíduos da natureza. Assim, à medida que reduzimos todos os indivíduos da natureza a esse gênero, comparando-os entre si, e verificamos que uns têm mais entidade ou realidade que outros, dizemos que, sob esse aspecto, uns são mais perfeitos que outros. E à medida que lhes atribuímos algo que envolve negação, tal como limite, fim, impotência, etc., dizemos que, sob esse aspecto, são imperfeitos, porque não afetam nossa mente da mesma maneira que aqueles que dizemos que são perfeitos, e não porque lhes falte algo que lhes seja próprio ou porque a natureza tenha errado. Com efeito, não pertence à natureza de alguma coisa senão aquilo que se segue da necessidade da natureza de sua causa eficiente. E tudo o que se segue da necessidade da causa eficiente acontece necessariamente. Quanto ao bem e ao mal, também não designam nada de positivo a respeito das coisas, consideradas em si mesmas, e nada mais são do que modos do pensar ou de noções, que formamos por compararmos as coisas entre si. Com efeito, uma única e mesma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo e ainda indiferente. Por exemplo, a música é boa para o melancólico; má para o aflito; nem boa, nem má, para o surdo. Entretanto, mesmo assim, devemos ainda conservar esses vocábulos. Pois como desejamos formar uma ideia de homem que seja visto como um modelo da natureza humana, nos será útil conservar esses vocábulos no sentido que mencionei. Assim, por bem compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, ser um meio para nos aproximarmos, cada vez mais, do modelo de natureza humana que estabelecemos. Por mal, por sua vez, compreenderei aquilo que, com certeza, sabemos que nos impede de atingir esse modelo. Além disso, dizemos que os homens são mais perfeitos ou mais imperfeitos, à medida que se aproximem mais ou menos desse modelo. Com efeito, deve-se, sobretudo, observar que, quando digo que alguém passa de uma perfeição menor para uma maior, ou faz a passagem contrária, não quero dizer que de uma essência ou forma se transforme em outra (com efeito, um cavalo, por exemplo, aniquila-se, quer se transforme em homem, quer em inseto). Quero dizer, em vez disso, que é a sua potência de agir, enquanto compreendida como sua própria natureza, que nós concebemos como tendo aumentado ou diminuído. Finalmente, por perfeição em geral compreenderei, como disse, a realidade, isto é, a essência de uma coisa qualquer, enquanto existe e opera de uma maneira definida, sem qualquer relação com sua duração. Com efeito, de nenhuma coisa singular se pode dizer que é mais perfeita por perseverar mais tempo no existir. Pois, a duração das coisas não pode ser determinada por sua essência, porque a essência das coisas não envolve qualquer tempo definido e determinado de existência. Uma coisa qualquer, entretanto, seja ela mais perfeita ou menos perfeita, sempre poderá perseverar no existir, com a mesma força com que começa a existir, razão pela qual, sob esse aspecto, todas as coisas são iguais. (Ética, 4, prefácio, Autêntica Editora, tradução de Tomaz Tadeu)