A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" - e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação [“a moral de escravos precisa sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de estímulos externos para em geral agir – sua ação é, desde o fundamento, por reação”, na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho]. [...] Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus mal feitos inclusive - eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento. (Genealogia da moral, 1ª dissertação, § 10, Companhia das letras, 2003, tradução de Paulo César de Souza)
“Alguém deve ser culpado de que eu esteja mal” – esta maneira de raciocinar é comum a todos os doentes, tanto mais quanto lhes for desconhecida a verdadeira causa do seu mal-estar, a fisiológica (– ela pode encontrar-se, digamos, numa enfermidade do nervus sympathicus, numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de potássio no sangue, em estados de tensão do baixo ventre que impedem a circulação do sangue, ou ainda numa degeneração dos ovários etc.). Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade – eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo. “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado” – assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: “Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si!...”. Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é – mudada. (Genealogia da moral, 3º dissertação, § 15, Companhia das letras, tradução de Paulo César de Souza)
E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido – para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. - Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele – primeiro passo para a convalescença. “Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade”; isto se acha no coração dos ensinamentos de Buda – assim não fala a moral, assim fala a fisiologia. - O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém mais prejudicial do que ao fraco mesmo – no outro caso, em que se pressupõe uma natureza rica, um sentimento supérfluo, um sentimento tal que dominá-lo é quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que minha filosofia perseguiu a luta contra os sentimentos de vingança e rancor, até ao interior da doutrina do “livre-arbítrio” - a luta contra o cristianismo é apenas um caso particular dela -, compreenderá por que coloco exatamente aqui em evidência meu comportamento pessoal, minha segurança instintiva na prática. Nos períodos de décadence eu os proibi a mim por prejudiciais; tão logo a vida voltou a ser rica e orgulhosa o bastante para isso, eu os proibi como abaixo de mim. Aquele “fatalismo russo” de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante anos apeguei-me tenazmente a situações, paragens, moradas, companhias quase insuportáveis, uma vez que me haviam sido dispostas pelo acaso – era melhor do que mudá-las, do que senti-las como mutáveis – do que revoltar-se contra elas... (Ecce homo, Por que sou tão sábio, § 6, Companhia das letras, 2003, tradução de Paulo César de Souza)
Qual pode ser a nossa doutrina? — Que ninguém dá ao ser humano suas características, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele próprio. [...] Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente [“Ninguém é responsável em geral por ele existir, por ele ser constituído de tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias, nesta ambiência”, na tradução de Marco Antonio Casanova]. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será. Ele não é consequência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade próprias, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser humano” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” — é absurdo querer empurrar o seu ser para uma finalidade qualquer. Nós é que inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade não se encontra finalidade... Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo — não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não existe nada fora do todo! [...] O conceito de “Deus” foi, até agora, a maior objeção à existência... Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo. — (Crepúsculo dos ídolos, VI, § 8, Companhia das letras, 2006, tradução de Paulo César de Souza)